Por Eduardo Fernandes.
Podcast em 1948, em foto de Sakari Pälsi.
Nesta semana, viralizou o texto “Por que a Internet não é mais divertida”, de Kyle Chayka. Ele descreve uma sensação que se espalha rapidamente: a de que a Internet virou um fardo.
Segundo o autor, as razões dessa mudança seriam:
- Aumento da desinformação on-line.
- A onipresença de anúncios e merchandising.
- Conteúdo irrelevante, impulsionado por algoritmos desgovernados ou otimizados pra publicidade.
- A cultura das estatísticas (números de seguidores, etc.), que criou uma divisão maior entre criadores e consumidores de conteúdo.
- A profissionalização dos usuários de social media. As pessoas postam como se fossem um empreendimento de mídia.
- Somos obrigados a ficar cada vez mais tempo em frente dos computadores.
- Além dos problemas que surgem com a popularidade: trolls, bate-bocas desinformados, entre outros.
Eu mesmo escrevi algo nessa linha, alguns dias antes. E tendo a concordar com muitos dos argumentos de Chakya. Mas é importante considerar algumas outras coisas. Senão, as 14 sugestões que eu vou apontar não farão sentido.
Idealização do passado #
A Internet da Era dos Blogs tinha inúmeros problemas. Alguns muito parecidos com aqueles que enfrentamos hoje. Essa época criou as bases tecnológicas e discursivas da atual encarnação da desinformação, da manipulação e da sensação de violência verbal onipresente.
Timelines, escrolagem, monetização, produção de conteúdo em ritmo industrial já existiam antes das redes sociais. Suas sementes são anteriores até à própria Internet. É uma lógica que veio do jornalismo comercial e da TV. Enfim, da cultura de massas.
Isso precisa ficar muito claro. As redes sociais só exacerbam a lógica da indústria do entretenimento. Senão, o risco é atirar no alvo errado, no sintoma, não na causa.
Midialização da vida #
Nós passamos o século 20 inteiro aprendendo a pensar e viver segundo a lógica da indústria do entretenimento (publicidade, jornalismos, TV e cinema). Até parte das artes tradicionais se misturaram com a chamada cultura pop.
As redes sociais “democratizaram” essa lógica. Ao ponto em que ela virou o ar que respiramos. É o que procuramos pra nos divertir, pra aprender, pra rezar, pra transar, pra arranjar relacionamentos e pra buscar saúde mental.
A lógica da mídia de massas vem monopolizando a diversão e o prazer, que se transforma em Entretenimento.
Entretenimento é uma versão industrializada, processada do prazer. É a mesma ideia da indústria alimentícia:
- Formatar, padronizar.
- Estimular o consumo repetido, periodicidade.
- Aumentar os estímulos (muito sal, muito açúcar, muita controvérsia).
- Embalar, empacotar, usando técnicas de publicidade.
A consequência é “midializar” todas as relações humanas. Do supermercado até o orgasmo.
A Internet levou essa ideia ainda mais longe. Agora, todos somos um tanto funcionários, personagens, analistas de mídia, relações públicas, etc.
Mesmo no mundo off-line, aprendemos a nos comportar como instrumentos de mídia. Cunhamos frases com ganchos, visitamos lugares pra Instagramá-los, nos vestimos seguindo tendências que observamos na própria mídia (ou tentamos combatê-las).
É nesse contexto que a Internet surge e se desenvolve. O da midialização da vida. O corpo produtor e objeto de entretenimento. A industrialização da psique.
Não estamos cansados da Internet, propriamente dita. Estamos fartos da mídia.
Quero mais dificuldade! #
Perceba que quase todas as reclamações da Geração X (ou anterior) sobre a atual Internet vêm acompanhadas de relatos de como era difícil acessar a rede. Nota-se uma certa nostalgia da inconveniência. Ainda que, na época, nós as odiássemos.
É que parte do prazer que sentimos ao usufruir de qualquer coisa vem da escassez, da dificuldade de obter o que queremos.
Somos viciados na sensação de jornada, e na antecipação da satisfação futura. O obstáculo é o motor do prazer.
Assim, há Internet demais na nossa vida. Não há “fricção” pra estar on-line. Pelo contrário: em cidades grandes e médias, o difícil é ficar off-line.
Superexposição #
A superexposição mata o prazer. É a nossa maior obviedade de estimação. Se você bebe muito, rapidamente precisará beber mais pra obter o mesmo resultado. Depois, a bebida vira um pesadelo.
Como diria o Dr. Gonzo, “You took too much. You took too much”. Nós exageramos na dose de Internet.
E, provavelmente, só estamos nos estágios iniciais da bad trip. As alucinações começam a chegar, a ansiedade aumenta, você se pergunta porque, afinal, se meteu com aquilo.
Galo influencer, numa rádio dos anos 1930. Fotos do museu Yle.
O ciclo da conveniência #
A Internet veio associada à outra droga: a conveniência. E não há como negar seus benefícios. A facilidade de obter conhecimento, de fazer transações financeiras, de navegar pelo clima e pela cidade, etc. Poucos gostariam de simplesmente abandonar a Internet.
Porém, a conveniência não é um fenômeno estático. É um ciclo. No começo, parece incrível. Mas traz sua própria autodestruição:
- Quanto mais fácil de obter e mais abundante é uma coisa, mais ela se torna banal.
- Em pouco tempo, é dada como garantida. Fica invisível.
- Depois, vira obstáculo e incômodo.
- O que leva à necessidade de buscar novas conveniências.
É preciso saber limitar a dependência da conveniência. Mais ou menos como alguém que paga pra fazer força na academia. Você aprende a gostar de algum esforço (ou pelo menos a tolerá-lo).
Senão, a própria conveniência se fragmenta em múltiplos obstáculos. É o que acontece com a Internet em 2023.
Finalmente, os 14 jeitos #
Vimos que parte do problema da Internet é a dosagem. Não é o único. Mas é o mais imediatamente gerenciável.
Então, essas são as primeiras 14 sugestões pra restaurar “a graça” da Internet:
- Usá-la menos. Dã.
- Usá-la estrategicamente (com intenção, não compulsivamente).
- Buscar outras formas de prazer e informação. Desmidializar a psique. Lembre-se, as pessoas também se divertiam e trabalhavam antes da Internet.
- Curadoria humana em 90% do tempo. Evitar ambientes controlados por curadoria algorítmica.
- Investigação contínua dos comportamentos compulsivos. Ou seja: prestar atenção antes de começar a escrolar ou esquecer da vida em aplicativos.
- Cortar a compulsividade assim que for percebida, enquanto ela está mais maleável.
- Ter uma visão realista de como funcionam os meios digitais (gasto de energia, consequências políticas, sócio e ambientais, etc.).
- Não idealizar o passado (“aquela Internet que um dia foi incrível”).
- Não idealizar o futuro (“um dia chegaremos à Internet ideal, sem problemas”).
- Valorizar os “hábitos analógicos” e orgânicos que abandonamos, como sentir o cheiro de um livro, a sensação de pisar no chão, o som da voz ao vivo, o toque, etc.
- Não buscar prazer e significado num só lugar. Muito menos numa tela. Diversidade contra o monopólio da midialização da vida.
- Se você se percebe como um junkie de validação on-line, ou um rabugento compulsivo, enfrente essas questões diretamente (na terapia, na sua prática espiritual, com a ajuda de amigos de verdade).
- Não tente transformar seus traumas em empresa de mídia. Você terá dois problemas: o trauma e o emprego de “growth hacker”. As redes sociais não curam ninguém. Só capitalizam nossos traumas.
- Ao interagir com a Internet, pense no resto do eco-info-sistema em que você está inserido. Se você não joga lixo na rua, se não ofende as pessoas ao vivo, por que faria isso on-line?
Enfim, uma primeira solução pra “chatice” da Internet é usar menos Internet. Levá-la ao status de ferramenta: usar quando necessário. Não como o arcabouço mais importante da humanidade, a fronteira final, o último biscoito do pacote.
Esse é um passo inicial para dessacralizar a Internet, a conveniência e o entretenimento. Mas é só o começo da jornada.
Mais recursos #
- Update: o midiólogo Douglas Rushkoff acaba de postar uma entrevista que ele deu à revista Time (21/10/2023). Segue bem a linha do post acima. Mas de um jeito muito melhor, claro.
- O podcast Search Engine traz uma excelente conversa entre os jornalistas PJ Vogt e Ezra Klein sobre o mesmo assunto desta edição. Se você não entende bem inglês, é só aguardar, porque devo voltar aos mesmos tópicos do episódio em breve.
- Vale também reler Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business, de Neil Postman. O livro é de 1985, mas está ainda mais atual hoje em dia.
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