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A nostalgia já não é a mesma

A nostalgia já não é a mesma

Por Eduardo Fernandes.

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Hoje eu pensei em compartilhar um texto meu das antigas. A ideia era espiar embaixo da pia e ver se havia alguma sujeira para limpar. Ou abrir aquela caixa e redescobrir uma roupa esquecida.

Mas, ao fuçar nos meus arquivos, tive outra experiência: não reconhecia o material. Sério. Nada ali parecia meu. Espero que isso não seja indício de alguma doença.

Você, leitor(a), que, visto daqui, me parece ser uma pessoa normal, por favor me explique: o que acontece? O autor do texto não consegue mais entendê-lo. Digo, se conectar com o subtexto, com o substrato emocional por trás dele. Isso tem cura?

O mesmo acontece com as diferentes camadas geológicas da tecnologia: vejo uma foto do primeiro iMac e sinto uma certa nostalgia. Mas não parece que usei um desses computadores. Soa a ficção. Será que vi num filme?

Pior: às vezes, sinto a mesma coisa em relação a fenômenos contemporâneos, tipo Twitter, o Notes do Substack e, agora, até mesmo o Mastodon. Para mim, microblogging virou uma espécie de calça bag: não sei mais se é passado ou tendência. Ainda que eu poste algo a cada 20 dias, parte do meu cérebro jogou essa tecnologia na mesma categoria dos papiros, da Variant II e da TV Tupi.

Talvez a constante aceleração da era digital crie esse descompasso psicológico na memória. É quase uma viagem psicodélica, como alguns teóricos previam que a Internet seria. Cheiro tem cor, som tem imagem, presente é passado e futuro. Tudo ao mesmo tempo.

Convivemos com muitas imagens, narrativas e registros, que não necessariamente sincronizam com nossas experiências pessoais do passado. Mas os produtos culturais associados a ele são constantemente reciclados (à sério ou ironicamente). E tentam forçar uma memória que, talvez, nem possuíssemos. Assim, são objetos de consumo que tentam ir além da História. Obsoletos funcionais.

Mas não sei se estou explicando direito.

Minha tese é a seguinte: está cada vez mais complexo olhar para o passado. Se é que ainda faz sentido usar essa palavra.

Além das guerras de narrativas travadas pelas esquerdas e direitas, das fake news e dos diversos tipos de gurus (por exemplo, Ryan Holiday tiktokzando os estóicos), ainda somos expostos aos múltiplos ciclos de nostalgia que viram produtos de consumo. Adidas Samba é moda de novo, mas em duas vertentes, a “original” (mais barata) e as recriações, em colaboração com artistas e celebridades (super caras).

Haja ramificação e multiversos. O capitalismo se expande no espaço, no tempo e sobre si mesmo.

Outro dia tentei usar inteligência artificial para recuperar uma foto minha de infância para presentear minha mãe. O programa fez um bom trabalho, exceto pelo meu rosto. Como o aplicativo trabalha com padrões, não conseguiu recriar certas não-linearidades da minha aparência (em bom português, me achou feio, quis me corrigir). E, assim, virei algo como um Adidas Samba de 2023.

Mas, como diria aquela música do Ramones, “não quero ser enterrado no cemitério de animais de estimação / não quero viver minha vida de novo”.

Ou seja: o passado não é mais contado como um único passado. Não tem mais o direito de ser passado. E o presente pode se tornar velho para um nicho, sendo recriado como premium para outro.

Será que entenderei este texto no futuro?