Skip to main content
eduf.me

A sabedoria de carregar malas

A sabedoria de carregar malas

Por Eduardo Fernandes.

Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.

Cena do filme Encontro com Homens Notáveis.

O primeiro semestre de 2022 foi o período mais nômade da minha vida. Troquei algumas vezes de casa, de cidade e até de país.

Se você já se mudou alguma vez, deve saber que o problema não é exatamente aprender a viver num lugar novo. Nem mesmo o apego ao passado. Irritante mesmo é ter que lidar com a logística. Ou seja, fazer as malas, se livrar de coisas acumuladas e carregar peso.

Geralmente, acontecem duas coisas: ou você fica meio melancólico e entra numas de reavaliar seus valores e objetivos, ou perde a paciência e começa a jogar tudo fora. Além disso, quando você chega ao novo local, também precisa desempacotar, rearranjar espaços, etc.

É por isso que hoje existe o mercado de moradia por assinatura. Funciona como viver num hotel. Alguém simplesmente cuida de mobiliar, pagar IPTU, limpar a casa e por aí vai. Você só precisa se preocupar em pagar.

PORÉM, no entanto, ainda assim, ao longo da história, existiam tradições que usavam o nomadismo, a migração e até a logística como método para encontrar sabedoria.

Um dos maiores escritores do Tibet, por exemplo, Longchem Rabjam, foi treinado desse jeito. Ele precisava se mudar toda vez que se sentisse mais confortável, toda vez que as pessoas começassem a se lembrar do seu nome.

Até onde eu sei, a ideia era se acostumar com a impermanência. E principalmente com o fato de que você precisa negociar constantemente com as circunstâncias. Em vez de tentar se livrar de todas as inconveniências da vida, o que é um processo infinito e caríssimo, é mais fácil se fortalecer, aprender a improvisar e a ser flexível.

Você também deve se lembrar dos ciganos, dos monges nômades chineses e dos primeiros cristãos. Paulo de Tarso, por exemplo, deve ter sido um dos sujeitos que mais andou na história da humanidade. Se ele usasse um Apple Watch para medir seus passos, teria fundido o aparelho.

O pensador francês Michel Foucault dizia que essa era uma das diferenças interessantes entre as tradições asiáticas e as europeias. As asiáticas focavam em inventar o que Foucault chama de técnicas de si (como Yoga, práticas respiratórias, etc.) e os europeus desenvolviam ferramentas (como respiradores e máquinas para corrigir posturas). Uma tradição se preocupa mais com treinamento e outra com criar objetos de apoio.

Enfim, curiosamente, esse assunto me veio à cabeça quando eu soube da morte de um dos maiores diretores de teatro do mundo, o Peter Brook. Ele fez um dos filmes que mais me influenciaram na adolescência: Encontro Com Homens Notáveis, de 1979.

Baseado na autobiografia de George Gurdjieff, é o perfeito road movie espiritual. Nada de AirBnb. Conta a história de um rapaz que sentiu esse comichão de viajar pela Ásia, passando pelas maiores inconveniências, arriscando a vida, para tentar encontrar sabedoria.

No caso, a sabedoria praticada num templo Sufi, completamente isolado. Ou melhor: deliberadamente escondido, para evitar desavisados ou gente como os personagens de Jack Kerouack – que pareciam buscar transcendência por meio de festas. Enfim, é um filmaço, que você encontra inteiro no YouTube.

Obrigado, Peter Brooke. E agora licença que eu vou empacotar mais uns livros.

Citado no episódio #

Encontros com homens notáveis (1979)