Por Eduardo Fernandes.
Cena de Station Eleven: crianças traumatizadas pela pandemia seriam capazes de construir um bom futuro?
Padrões mentais são escorregadios. Você pensa que se livrou de um, mas ele acaba voltando. Nesse caso, meu ranhetismo cultural: basta surgir um hype que fico automaticamente desconfiado. Porém, em vez de simplesmente ignorá-lo, tenho de investigá-lo e achar um motivo para reclamar.
Aconteceu de novo com a minissérie pós-apocalíptica Station Eleven, da HBO. Baseada num livro de 2014, de Emily St. John Mandel, fala sobre uma pandemia que destrói a civilização como a conhecemos. Adeus, tecnologias, conveniências e até estados nação.
Em vez de descambar para um cenário Mad Max, a série adota um tom bem mais prosaico: mostra como, para sobreviver, as pessoas tiveram que voltar a um sistema quase feudal. A vida continua, mas sem eletricidade.
Assistimos aos primeiros anos da reconstrução dessa sociedade a partir de um ponto de vista bem particular: o de um grupo de teatro mambembe Shakespeareano, que se apresenta regularmente, circulando por um circuito mais ou menos seguro.
Ou seja, tudo para agradar velhotes nostálgicos como eu: pitadas de filmes indie, trilha sonora com Parliament / Funkadelic, além de uma história em quadrinhos surreal, inspirando grupos fanáticos. Tudo embalado num roteiro não-linear, cheio de mistérios e frases de efeito ocasionais.
Perfeito para a volta do meu instinto ranheta: “Soa à distopia fabricada via pesquisas de marketing, para agradar à Geração X”. Quem disse que consegui resistir? Assisti a uns capítulos, esperando reforçar meu ceticismo. Afinal, sempre damos um jeito de continuar a ser quem achamos que somos. Logo estava engajado. É que, embora a narrativa de Station Eleven seja um tanto solta demais, definitivamente, tem pontos interessantes.
Por exemplo, no episódio 5, acompanhamos o cotidiano de alguns norte-americanos isolados num aeroporto, enquanto a sociedade entra em colapso lá fora.
Eles passam pelos vários estágios da sobrevivência: primeiro, viciados pela conveniência, surtam porque seus voos atrasaram. Logo, percebem que não será mais possível voltar à “normalidade”. Assim, resignam-se a esperar, esperar e esperar.
Aos poucos, as garantias do mundo moderno vão se dissolvendo — em especial a Internet. Então, a materialidade do mundo vai retomando seu lugar: celulares viram apenas objetos de plástico, vidro e metal. Os smarts-alguma-coisa perdem sua frágil esperteza imputada.
Felizmente, os retirantes se dão conta de que, afinal, estão num aeroporto: um local protegido, com comida (e bebida alcoólica) relativamente abundante. Pelo menos por algum tempo.
É claro que a história começa a complicar. Mas nem precisaria. O que mais me interessou nela foi exatamente esse aspecto, digamos, “realista” da quebra progressiva dos nossos atuais padrões de vida. Como alertava Buñuel, já em 1962, quando ficamos trancados juntos num local, tendemos a reajustar nossas sensibilidades morais.
Mas, a duras penas, também surge uma nova relação com o planeta, a partir das sobras da parafernália do mundo capitalista. O que me lembrou de um texto de Ailton Krenak: os índios estão acostumados a sobreviver, mas e a sociedade moderna?
Station Eleven faz algumas perguntas provocadoras: como lidar com o luto de uma cultura? “Sobreviver não é o suficiente“. Como superar o trauma da transição? Será que a geração descompensada que a assistiu (e também a provocou) também vai atrapalhar o futuro?
Não quero atrair urucubaca, mas, em breve, acho que teremos que pensar em coisas um tanto parecidas. Com ou sem ranhetismo.
Obrigado ao Gabriel Pardal por apontar umas correções no texto.
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