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A vida artística

Por Eduardo Fernandes.

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O ceramista e músico (nas horas vagas), Nick Cave.

Milagre. Neste ano, acho que assisti a só dois documentários sobre artistas: David Lynch - The Art Life e, agora, This Much I Now To Be True, sobre Nick Cave. Quer dizer, espera aí. Teve a PJ Harvey também. Enfim. Melhor nem começar a investigar, porque vou descobrir mais.

De qualquer forma, o que eu queria dizer é o seguinte: Cave e Lynch são duas personalidades bastante diferentes, mas compartilham algo muito comum com praticamente todos os artistas: o amor à rotina.

Se o pessoal do capital financeiro gosta de adrenalina, de dar reload em gráficos (o que não deixa de ser um consumo de narrativas), criadores precisam de alguma estrutura, de repetição, por meio da qual possam experimentar, experimentar e experimentar. Todos os dias.

David Lynch se refere a isso como “a vida artística”. Não importa o que aconteça, ele acorda e vai lidar com seus pincéis. Ou ferramentas de carpintaria. Ou constrói narrativas. Não interessa, exatamente, nem o meio e nem a mensagem: a mente de Lynch precisa estar engajada no ato de capturar e materializar ideias.

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Lynch dá um jeito de integrar até mesmo a paternidade à sua rotina artística.

Pense, agora, na trágica vida de Nick Cave. Perdeu dois filhos: um de 15 anos, que caiu de um penhasco, outro de 31, que morreu uma semana depois de ter sido liberado da cadeia. Mudou de cidade e de país várias vezes. Mas só nos momentos da criação é que diz ter encontrado alguma espécie de paz.

Aliás, no começo de “This Much I Know...”, ele conta como virou ceramista para enfrentar a falta de dinheiro durante a pandemia. De alguma forma, ele precisa exorcizar o cotidiano criando estátuas de demônios. Além de escrever newsletters e livros.

Alguns meditadores diriam que essa necessidade de “produzir algo a partir de ideias” pode ser superada. O difícil é se convencer a quebrar o hábito.

Você pode até perceber o quão volúveis (e potencialmente perigosas) as ideias são. Mas desistir de se deixar perturbar por elas é um trabalho longo. E qual é a única ferramenta que torna isso possível? De novo, a rotina, a repetição.

Obviamente, eu também sofro de apego à criação. E tento criar estruturas blindadas, SUV’s, Sherman Tanks, para defendê-las dos caos social, econômico, político e psicológico que as ameaçam cotidianamente.

A “vida artística” não é, necessariamente, uma alienação, mas uma estratégia para ir além do comportamento de manada, para evitar dizer só o que todos dizem, discutir só o que está em voga e pensar só o que é “pensável”.

Mas, é claro, tudo pode ser usado como escapismo. Ou gerenciamento de estados ansiosos da mente. "Sorte" de quem pode exercer essa atividade, como David Lynch, que conseguiu encontrar público para o seu surrealismo. Ou Nick Cave, que ainda conta com parceiros como Warren Ellis para dividir os experimentos. Inúmeros artistas não tiveram esse "privilégio".

No fundo, como criador, você dá o que tem de melhor, expressa a sensibilidade que consegue desenvolver. É uma oferenda. Uma que se descobre e se corrige na prática. Dia após dia. Repetição após repetição. Sob os auspícios da deusa Rotina.


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