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A vida não é uma timeline

A vida não é uma timeline

Por Eduardo Fernandes.

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A vida não é uma timeline. Quer dizer, quem sou eu para saber o que é a vida? Mas agora já foi. Só sei que ela não é assim — para soar como um personagem de Ariano Suassuna.

Não é uma sucessão linear de acontecimentos que superam os anteriores. Tecnologias e ideias de diferentes épocas convivem e transformam-se constantemente. Produtos culturais deixam múltiplos rastros e fantasmas. Coisas esquecidas voltam à moda. Ou nunca morrem para certos nichos.

Por exemplo, o Deftones (foto acima). Graças ao TikTok, virou tendência entre a geração Z. Quem diria. A banda foi famosa, mas de segundo escalão, na era do surgimento do nu-metal. Depois, voltou ao underground por pelo menos uma década.

Aliás, tenho me surpreendido ao conversar com algumas pessoas da geração Z. Elas conhecem minhas referências culturais mais obscuras, se interessam por atividades que definiram minha vida (zines, por exemplo), são críticas à Internet e escrevem ensaios como esse, de Rayne Fisher-Quann.

Parte da geração Z se interessa pela X, que, por sua vez, cultuava duas áreas conflitantes dos anos 70 (punk e hard rock / progressivo). E cada uma dessas gerações reinterpretou o passado, criou coisas que nem podem ser chamadas de “novas” e nem de “velhas”.

Não é exatamente um ciclo. Nem bem inovação. São camadas de história dialogando e digladiando ao mesmo tempo. Uma contínua suruba cognitiva. Nós ainda ouvimos Beatles. E Bach. E tocamos tambores.

Então, por que, afinal, ainda insistimos em enxergar a cultura como uma timeline?

Mas cheguei a mencionar que meu assunto de hoje é a morte dos podcasts? Pois é.

Nessa semana, o Spotify cancelou seu serviço de transmissão de áudio ao vivo. Na sequência, surgiram os previsíveis artigos da imprensa especializada em tecnologia dizendo que o interesse no conteúdo em áudio está em declínio. Seria a morte dos podcasts? Ou o nascimento de mais um clickbait?

A lógica é sempre parecida. Números, argumentos e “análises”. Agora o que vale são os vídeos em formato curto. Semana que vem, estarão na fila da obsolescência. Assine a mais essa newsletter para saber como será “o futuro” (como se houvesse apenas um).

Bem-vindo ao universo paralelo da imprensa de tecnologia norte-americana. Uma das coisas mais tóxicas que eu já inseri no meu cérebro. Quem ainda aguenta isso?

Até há pouco, eu achava inofensivo acompanhar notícias sobre tecnologia diariamente. Cheguei até mesmo a pensar que faria algum dinheiro tentando analisá-las e extrair algum sentido delas. Seria meu “nicho”.

Mas admito que esse não é um trabalho para qualquer um. Ele tem me emburrecido (e entediado) cada vez mais. Hoje em dia, mal tenho paciência para ler os títulos das newsletters sobre tecnologia que batem na caixa postal.

Será que só eu estou perdendo o interesse pelas novidades de tecnologia (pelo menos pelo jeito como elas são contadas recentemente)? Nossa época já conseguiu produzir alguém como James Burke? Ou seja, um historiador que olha para as conexões, não para as timelines?

Talvez hoje eu esteja apenas cansado. Mas tenho a impressão de que tratar a cultura como timeline, como uma sucessão de novidades e obsolescências, é basicamente mecanizá-la, congelá-la, tentar botar de volta o gênio na garrafa.

Afinal, uma das maiores forças da cultura é sua maleabilidade, sua vocação para dobrar o espaço-tempo. Sem nem precisar de telescópio para fotografar.