Por Eduardo Fernandes.
Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.
Nesta semana também fui afetado pela gentrificação dos reality shows promovida pelo diretor Peter Jackson. Em outras palavras, se me achava esnobe demais para o BBB, não resisti a assistir (e comentar copiosamente) o documentário Get Back, sobre os Beatles.
Claro: também gastei tempo interpretando os comportamentos “separatistas” de George Harison, me comovendo com o jeito mandão-inseguro de Paul McCartney e admirando a postura profissional good vibes de John Lennon e Ringo Starr. Como é costumeiro na época dos BBBs, a Internet fervilhou com palpites psicológicos sem muito fundamento. Os meus valem nem 10 centavos.
Mas meu assunto aqui é outro. É que, por estranho que pareça, a situação dos Beatles no documentário é semelhante à de um sprint nas empresas de tecnologia.
Sprint é um período curto, intenso e imersivo de trabalho, em que uma equipe tem um produto específico para entregar. E rapidamente. Os participantes vivem numa mistura entre cansaço absoluto e motivação messiânica para “resolver um problema”. Supõe-se que você se sinta completamente motivado, até orgulhoso, de estar ali.
O sprint é um dos fenômenos mais sintomáticos do capitalismo avançado: os participantes fazem quase que uma viagem psicodélica de trabalho (muitas vezes até literalmente, com microdosagens de certas substâncias para ajudar onde a cafeína falha). É o mais próximo que conseguimos chegar de um Khumba Mela, a celebração da criação via esforço religioso.
Trabalhar até criar #
É fácil perceber que os Beatles trabalhavam duro. Como escultores, partiam de uma ideia bruta, uma pequena célula proto-pop que furava o cansaço generalizado e pedia atenção. A partir daí, era refinada por um processo de repetição exaustiva.
Mas o que, talvez, seja mais difícil de notar, é o papel da procrastinação naquele contexto. O quarteto gastava muito tempo brincando e tocando versões cômicas de músicas dos seus ídolos. Ou simplesmente falando coisas sem sentido.
O cansaço (e a tentativa de superá-lo) produz um certo “barato”, que leva a criatividade para áreas não lógicas do cérebro. Você está, ao mesmo tempo, trabalhando, micro-descansando e juntando matéria-prima para a próxima fagulha de ideia.
Tive bandas por 10 anos ou mais. Certamente, testemunhei essa mistura de tensão, estupidez, diversão e produtividade que acontece durante ensaios prolongados. Na verdade, isso acontece até mesmo quando se toca sozinho, com um computador. Você se aborrece e se infantiliza, mas acaba funcionando.
Felizmente, o sprint dos Beatles resultou em mais do que números abstratos numa conta bancária. Ainda assim, também gerou fortunas. “Dinheiro é uma troca energética”, se diz por aí. Assim como o trabalho, obviamente. E energias mudam constantemente.
Portanto, não é de se espantar que George tenha gravitado para outras parcerias nas décadas seguintes. Ele tentou avisar o grupo (como quando, no documentário, explicou o estilo de Eric Clapton para um entediado Paul McCartney). Mas não foi compreendido.
Faz parte. Nem sempre é possível voltar, voltar para onde um dia pertencemos.