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Afinal, quem pode jogar?

Por Eduardo Fernandes.

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A menos que eu esteja alucinando, lembro-me de uma estranha moda que surgiu em 2023: a de imitar personagens não jogáveis de videogames. Ou melhor, os Non Playable Characters (NPC).

Isso foi entre a moda dos NFTs e da IA, lembra? Ou será que entre AC e DC? Ou INSS e IOF? Está difícil de acompanhar tantas siglas passando pela tela.

O fato é que alguns de nós, seres sencientes (SS), iam até o aplicativo chinês (TIKTOK) e pagavam centavos pra pessoas orgânicas (POs) fazerem movimentos repetitivos (MR) e dizer algumas palavras.

Era quase que um estranho renascimento das artes de persistência, tipo Houdine e David Blaine. O influenciador podia ficar 5 horas contínuas filmando a si mesmo indo pra frente e pra trás, segurando uma mandioca, e repetindo a palavra “flor”.

Isso gerou uma moda de comentários on-line, espantados com a precarização do trabalho no mundo. Nós já estávamos aceitando até imitar computadores pra ganhar algum dinheiro. E isso realmente funcionou pra alguns influenciadores NPC.

Mas eu queria usar esse fenômeno pra pensar em outra coisa. Em como somos dependentes das repetições. Elas estão por toda a parte.

A começar pela pessoa assistindo aos NPCs do TikTok. Provavelmente, ela, também, agia como um personagem não jogável: scroll, rizada, pagamento, scroll, rizada, scroll, rizada, pagamento.

Depois, vem o crítico: ridiculariza, publica, checa as estatísticas, faz tudo de novo. Ao sacanear o NPC, você se torna um deles. Em especial, porque continua publicando numa “plataforma” (ou melhor, numa “Roda de Hamster”).

Comer, dormir, reproduzir, trabalhar, se divertir, pensar sobre si. Se você investigar direito, vai encontrar milhares de loops e micro repetições no seu cotidiano. São concatenações de hábitos e padrões tão sutis que, geralmente, passam despercebidos.

E também há um aspecto macro. Segundo alguns sistemas de pensamentos associados à Ásia, existe algo chamado “existência cíclica”, ou samsara. Assim, do ponto de vista “cosmológico”, todos somos hordas de NPCs, repetindo padrões de comportamento por zilhões de anos.

Um deles, é imaginar que, se criarmos mais uma máquina, mais uma técnica ou ideologia, transcenderemos finalmente os NPCs. Mas acabamos sempre numa outra de linha de produção.

O que não é necessariamente ruim. Pensar em termos de dualidades (“é condicionamento ou é liberdade”, por exemplo), é o que nos aprisiona na lógica NPC.

Pense num personagem supostamente jogável (PSJ) de um videogame. Ele não é exatamente livre. Pelo contrário, precisa seguir lógicas bastante rígidas pra se dar bem. Tanto que existem sites e fóruns dando dicas de quais são essas “melhores práticas” pra finalizar o jogo.

O próprio truque de ativar o God Mode é o exato contrário da liberdade: o usuário deixa de ser um jogador propriamente dito e aceita todas as regras da máquina. Tudo pra conseguir uma satisfação rápida e sem inconvenientes. God Mode não deixa de ser um NPC.

Mas, o que, então, faz com que imitações humanas de NPCs sejam tão divertidas pra algumas pessoas? Meus palpites:

No samsara, a repetição é a lógica majoritária. É como se estivéssemos em redes de loops interdependentes que se repetem em ciclos diferentes, quase que como órbitas.

Mas esses padrões também podem ser vistos de outra forma, como mandala – uma lógica que precisa ser explicada por pessoas qualificadas.

De qualquer forma, somos produtos da repetição (até mesmo se você considerar o sexo). Deve ser por isso que repetimos tanto o padrão de criar máquinas, enquanto sonhamos com liberdade.