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Além da fadiga de novidades

Por Eduardo Fernandes.

Semana passada, depois dos anúncios da Apple no WWDC, o jornalista Rodrigo Ghedin relatou que desenvolveu uma espécie de fadiga de novidades. Quem não?

Minha hipótese aqui é que esse cansaço indica uma mutação pré-decadência de um estilo de indústria cultural. Uma ressaca de tanta velocidade, de tantas requisições por atenção.

Mas, espera aí: não estamos falando sobre tecnologia? Por que a expressão "indústria cultural"? Explico.

Periodicidade #

Por volta de 1440, Gutenberg inventa o sistema mecânico de tipos móveis. Isso possibilita a criação da Imprensa, a produção e distribuição de conhecimento em ritmo industrial.

Passamos a acreditar que devemos adquirir e processar cultura em ciclos regulares de tempo, o que chamamos de periodicidade.

Criamos os hábitos de consumo industrial de informação e, consequentemente, a obsolescência cultural programada ("daily", "breaking news"), os avós dos atuais updates.

Entretenimento #

No pós-Segunda Guerra Mundial, há um grande salto no estilo e velocidade da indústria cultural, com a consolidação da indústria do entretenimento, Hollywood, rádio, TV, publicidade, jornalismo cultural e tabloidismo.

Nessa época, também surgem os embriões das versões contemporâneas das Fake News e do mercado de atenção (segundo Tim Wu). Também passamos a usar a Cultura Pop como referência para a construção de identidades.

Tecnologia vira identidade #

Nos anos 1980, Steve Jobs faz a ponte: ajuda a aplicar na tecnologia a mesma lógica da Indústria do entretenimento: transforma computadores em entretenimento, identidade, estilo de vida e assunto para ser coberto extensivamente pela mídia.

De certa forma, é ajudado pela cultura cyberpunk, por fanzines e revistas como a High Frontiers, Mondo 2000 e, mais tarde, a Wired.

Aceleração #

Com a popularização da Internet e, nos anos 2000, o lançamento do iPhone, a "tecnologia digital cultural", ganha ares de indispensável, inescapável. Grandes corporações descobrem o seu potencial.

Com as redes sociais, as periodicidades ficam cada vez mais curtas, conflitantes e sobrepostas. Se a TV era "tempo real, ao vivo", as redes superam a nossa capacidade de atenção. Portanto, as atualizações se acumulam em inboxes e viram ansiedade no cérebro.

Como nosso "bioware" é limitado, não conseguimos consumir no mesmo ritmo da tecnologia. Então, delegamos o gerenciamento de informação para algoritmos. Ou seja: máquinas filtrando e processando conteúdo que criamos como se fôssemos máquinas. Aliás, cada vez mais, os próprios bots também assumem a produção cultural.

Assim, em vez de grandes pacotes de lançamentos, vivemos num rítmo que os técnicos chamariam de "rolling release", isto é: atualizações constantes, acontecendo nos bastidores.

Eventos como o WWDC não acontecem por causa de limitações técnicas, são rituais de marketing. Pior: muitos updates anunciados sequer estão disponíveis durante o evento. Alguns nem podem ser utilizados por todos os consumidores. A questão aqui é incitar a compra de novos devices e fortalecer a imagem da corporação.

Vício #

Lembre-se, ainda seguimos aquela mesma tendência dos primórdios da Imprensa: em vez de "receber" atualizações passivamente, nos habituamos a desejá-las e procurá-las. Até o ponto em que a busca fica mais importante que o resultado.

Portanto, as informações têm que ser mais curtas (ou apenas armazenáveis rapidamente), para que possamos continuar no frenesi da busca. Refresh. Abra outra aba. Assine mais uma newsletter. É uma lógica industrial, compulsiva, a linha de produção e a linha de consumo.

Esse é o contexto global na qual os updates acontecem. Eles são mais um ponto de requisição de atenção.

Fadiga #

Às vezes, você precisa prestar atenção nos updates. E isso provoca a fadiga a que Ghedin se refere.

O que pode ser bom, já que nos dá a oportunidade de reconhecer a compulsão e a insanidade da coisa toda. Muitos nos percebemos até viciados. E, assim, enxergamos os custos (psicológicos e sociais) das atualizações. Questionamos até o próprio conceito de atualização. A quem elas servem?

Aparentemente, a fadiga cognitiva vem se espalhando por toda a cultura. Gradativamente, nos cansamos de ser tratados como máquinas e de desejar nos comportar como elas.

Descontentamento compulsivo #

No limite, a mecânica do update também pode reforçar padrões de descontentamento. Pode criar o mal-estar do workflow: quero mudar porque estou entediado, porque a grama alheia é mais verde, etc.

Até certo ponto, o descontentamento é útil. Em excesso, se torna um monstro consumindo a mente.

Soluções #

Dizem que nunca se deve terminar um texto sem apontar para uma solução. Então, segue mais uma IGE® (Ideia Genial do Eduf): pedir para o cineasta David Cronenberg desenhar nossos próximos aparelhos e interfaces.

Está aí um sujeito que entende de mentes viciadas, não é? Assim, que tal um celular que fosse mais ou menos como as máquinas de escrever do filme Naked Lunch? (Omito as imagens mais nojentas, como as da Clark Nova.)

Typewritter do Naked Lunch

Ou os joystics e entradas USBone do eXistenZ?

Bonus: sons de interface compostos por Stockhausen.

Alguém iria querer usá-los o tempo todo?


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