Por Eduardo Fernandes.
Transcrição #
E hoje o podcast vai soar um pouco mais tosco do que o de costume porque estou na estrada, gravando num celular e não no meu super microfone de ouro estilo Raul Gil. Enfim, é uma pequena inconveniência, espero que perfeitamente tolerável. De qualquer forma, isso casa bem com o assunto de hoje.
Se você acompanha meu conteúdo regularmente, já deve ter me ouvido criticar, ou pelo menos refletir sobre conveniência. Mas eu queria fazer uma distinção aqui entre dois tipos de conveniência: a negativa e a positiva.
E aqui não se trata de julgamento de valor. Conveniência negativa é aquela que elimina coisas que consideramos obstáculos. Por exemplo, e-commerce e entregas em casa eliminaram vários problemas de fazer compras: ir até à loja, trânsito, pagar em caixas lotados, entre tantas outras coisas.
Conveniência positiva é aquela que adiciona processos ou técnicas para chegar a um determinado objetivo. Por exemplo, repare que em boa parte dos aeroportos, você precisa andar bastante até chegar às esteiras de desembarque de bagagens. Eu já li que isso foi desenhado para que o viajante não sinta a demora da chegada das bagagens. E, claro, para que ele repare nas lojas ao longo do caminho.
É claro que, na verdade, toda conveniência é relativa. Como diria o pensador francês Paul Virilio, quando criamos os aviões, simultaneamente, criamos os desastres aéreos, mais emissões de carbono, entre tantos outros fenômenos. De certa forma, graças à onda de filmes de ficção científica em voga, estamos aprendendo a entender que tudo o que fazemos causam múltiplas consequências complexas no universo. A invenção de uma ferramenta ou técnica, cria múltiplos multiversos e fenômenos contraditórios, nesse universo mesmo aqui, sem precisar de super-heróis para organizá-los e defendê-los.
Mas há uma categoria de conveniência negativa ainda mais interessante: a que usamos no nível psicológico. Por exemplo, quando nos apegamos a estados depressivos e até mesmo a doenças para conseguir algum tipo de atenção ou mesmo privilégio. Por exemplo, crianças adoram enrolar para comer. Uma colherada de arroz, 15 minutos de dispersão ou birra. O motivo parece relativamente simples: esse é um dos momentos em que recebem mais atenção dos pais: “por favor, filho, só mais um pedaço de alface”.
Um dos melhores lugares para estudar a conveniência negativa é o livro de 1864, Memórias do Subsolo, de Fiodor Dostoievski.
Pode-se dizer que o tema principal do texto é mostrar as maquinações que uma pessoa pode inventar para evitar enfrentar as incertezas e rejeições da convivência social. O personagem principal vive como uma espécie de malabarista psicológico, tentando equilibrar duas fantasias: de um lado, o sentimento de que ele é intelectualmente superior ao resto da sociedade. De outro, a solidão, o isolamento e a necessidade de ter algum contato com outras pessoas.
O personagem anônimo cria diversas técnicas de conveniência negativa, entre elas a própria ideia de superioridade. Basicamente, evita entrar em contato com as pessoas. O problema é que isso cria vários subprodutos que levam a mais isolamento, como, por exemplo, a dificuldade de entender certas mensagens sutis da comunicação interpessoal. Ao longo do livro, o protagonista vai tentar corrigir constantemente os problemas que ele próprio vai criando, ao… tentar resolver problemas. E é isso que traz o humor pesado e catártico ao texto.
Ou seja: vale a pena ler ou reler o livro pensando na nossa sociedade atual. Como tentamos evitar inconveniências automaticamente, sem pensar que elas poderiam trazer aprendizados muito importantes. Ou, pelo menos, evitariam ter que enfrentar depois as múltiplas inconveniências que surgem do processo de buscar a conveniência.
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