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Bonzinhos e maldosos

Bonzinhos e maldosos

Por Eduardo Fernandes.

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Já faz algum tempo que estou escondendo uma coisa. É, escondendo. Deixe-me contar por quê.

Quando uma newsletter cresce, o público se diversifica. E parte da diversão se dissipa. O autor precisa se explicar mais, evitar piadas herméticas e deixa de expor parte dos seus gostos. Tudo por medo de engatilhar leigos e causar algum sofrimento desnecessário.

Não que eu faça sexo com alienígenas ou algo assim (há controvérsias). Não lavo dinheiro. Não conspiro com militares. Não escondo cadáveres debaixo da cama. Mas, enfim, nunca falei sobre esse assunto.

Antes de revelá-lo, você viu a série Treta, da A24 para a Netflix? É uma comédia. Mostra o catastrófico encontro de dois tipos de descendentes de asiáticos, que moram nos EUA.

De um lado, uma empresária, filha de chineses, bem-sucedida, que dirige um carro de luxo. De outro, um coreano, construtor, frustrado, sem grana e usando uma pick-up velha. Os dois se envolvem numa briga de trânsito, que vira uma perseguição cada vez mais obsessiva. Viram arqui-inimigos.

Por meio da chinesa, a série critica o ambiente de positividade tóxica de classe-média, que impera em parte da Califórnia: terapias alternativas, microdosagem, diários de gratidão, festas cheias de hipocrisia, etc.

A empresária tenta manter a aparência de gratiluz. Mas se tranca no quarto para se masturbar com uma arma. E sai pelas ruas arranjando brigas com o coreano.

Até aí, é mais do mesmo. Aquela mentalidade que o jornalismo e a indústria do entretenimento ajudaram a popularizar nas últimas décadas: onde quer que exista algo que pareça virtuoso e feliz, haverá uma podridão para ser revelada. Essa desconfiança genérica hoje é, praticamente, nosso sistema operacional.

A série só atualizou o alvo. Agora é a cultura woke e o capitalismo fofo. Já os pobres continuam doidos porque estão pobres. E sofrem para, no limite, virar ricos. Assim se constrói mais um entretenimento de denúncia.

Mas o que isso tem a ver com o assunto que estou escondendo? Tudo.

— E o que é? Fale logo.

— Bem, é o Chat Pile.

— Como?

— É uma banda de sludge metal (pesado, sujo, arrastado) de Oklahoma, EUA.

— Era isso que você queria esconder? Uma banda?

Sim. Decepcionante, eu sei. Mas é que o Chat Pile faz uma música industrial, nojenta e deprimente. Mas pegajosa. Não consigo parar de ouvir a faixa “Cut”.

O destaque vai para o vocalista, Raygun Busch, que soa como um filho de Ian Curtis (Joy Division) com um urso. É um excelente ator. Trata de assuntos super engatilháveis, de um jeito extremamente_ perturbador. Mais uma vez, o denuncismo da raiva encubada dos norte-americanos.

Porém, é perceptível que, escondido em algum lugar da agressividade, a banda tem um coração pop. Mais ou menos como o Nirvana no começo de carreira. A frustração, a marra, a perturbação mal conseguiam esconder uma vocação para a doçura.

Pense na carreira de uma banda como o Chat Pile. Acabará prematuramente? Vai virar pastiche? Perderá a raiva e ficará “mais comercial”?

Porque, felizmente, nem mesmo o ódio se sustenta para sempre. Você precisa alimentá-lo, como bem demonstrou Akira Kurosawa em Ran. Mesmo assim, a raiva pode se tornar mais ornamental do que realmente sincera.

Algumas pessoas acham lindo sofrer e (inconscientemente) tentam cultivar, ampliar, esteticizar dramas. Ou denunciá-los. Denúncia pode ser uma excelente desculpa para usufruir de coisas inaceitáveis e para viver estagnado. Denúncia, às vezes, pode virar ausência de imaginação e de compromisso.

Enfim, eu não queria falar do Chat Pile porque os temas da banda são super bad vibes. E, realmente, Raygun Busch, tem o talento para contar histórias difíceis. Mas Treta me deu um motivo para sair do armário.

É que parece que lidamos com dois lados do mesmo fenômeno: os good goodies e os bad baddies. O culto da positividade (seu ambiente, acessórios e produtos) e o da negatividade.

Se eu tivesse que cultuar algo, seria mais a transitoriedade dos sentimentos. A mudança constante. As nuances. As áreas cinzentas. Consequentemente, busco arte que não se resuma ao conforto da denúncia, nem à glorificação do sofrimento. Algo que possa investigar, expressar, sem ter que criar uma identidade coerente.

Ainda assim, tenho que confessar que o Chat Pile me produz esse estranho e bizarro interesse. Vai ver, é meu débito cármico, mesmo.