Por Eduardo Fernandes.
Parece que o algorítimo do YouTube quer que eu assista ao Loki, novo seriado da Marvel. Nada contra, mas fica para a próxima. Ainda assim, acabei vendo alguns comentários de Youtubers sobre múltiplos universos, um assunto que me interessa e que parece ser importante na série.
Não é de se espantar que as narrativas sobre múltiplas realidades estejam na moda. Parece um reflexo da época da pós-verdade e das bolhas de informação. Um tempo de fé cega na desconfiança – seja do governo, das corporações, da ciência até da comunicação interpessoal.
Multiversos #
A relação está desgastada, Mô. Passamos por muitas coisas juntos. A suposta polarização ideológica da guerra fria, o fim da história, o cinismo nos anos 80 e 90, o culto ao deus mercado, etc.
Porém, quando se examina cada uma dessas épocas de perto, as grandes explicações se dissolvem. E os multiversos, dentro desse aqui mesmo, ficam evidentes. A Internet apenas facilitou o processo de percebê-los.
Hoje é relativamente mais simples de entender (e de se espantar) que consigamos interpretar e viver as coisas de modos tão diversos. Vide a vacinação no Brasil. A experiência de pandemia de Jeff Bezos é tão diferente da de um habitante de favela na Índia, que é como se ocorressem em outros universos.
Multinegócios #
Provavelmente, isso sempre foi assim, mas tentávamos nos focar em discursos mais genéricos, como comunismo, capitalismo, fim da história, mão invisível. Agora, a indústria do entretenimento aprendeu a usar a fragmentação para ampliar seus negócios.
No caso da Marvel, os criadores podem desenvolver inúmeras versões dos mesmos personagens e marcas, conectar, abandonar e retomar arcos narrativos, gerando uma quantidade infinita de produtos. Fora que também se cria mais material para os fãs debaterem e especularem, o que resulta em propaganda gratuita.
Próximos capítulos #
O problema é o seguinte: com a popularização do reconhecimento da fragmentação e do debate sobre multiversos, cedo ou tarde, isso pode causar uma reação contrária. Quer dizer, a nostalgia das grandes explicações salvacionistas. E, então, vai saber que loucuras surgirão.
Mas, assim como toda explicação genérica esconde várias particularidades, toda fragmentação também tem um lado coletivo. Por exemplo, Loki pode falar sobre multiversos, mas está calcada em valores e metodologias da indústria do entretenimento norte-americana, do capitalismo. Não reflete, exatamente, como certas religiões asiáticas ou indígenas entenderiam os universos paralelos.
Spoiler: discussão viajante #
Não quero soar parcial, mas o budismo é a única "religião" que eu conheço (um pouco) mais de perto. E esse é um assunto, até certo ponto, crucial no dharma. Sutras e tantras descrevem bilhões de universos, ou Trichiliocosmo. E de uma forma bem precisa.
Mas o praticante budista não é encorajado a estudar essas coisas inicialmente. Ou melhor, não a partir de questões "como isso funciona? Como provo que é verdade?"
Antes, desenvolva compaixão #
Primeiro, se explora esse assunto via algo vagamente parecido com a ética. O estudante considera que existam muitas categorias de seres, para perceber certas características e oportunidades da sua própria existência.
Ao mesmo tempo, o convite é entender as realidades paralelas que existem dentro de você mesmo, da sua própria mente. Nisso, estamos todos juntos no mesmo barco, a comunidade do infortúnio. É um movimento dinâmico: genérico e também fragmentado.
Antes do caos, a lama #
Você não deve cultuar o caos até que, mais ou menos, entenda seus próprios vieses, seu caos interno. Ao mesmo tempo, quanto mais você se aprofunda no conhecimento dele, seus padrões revelam características comuns a todos os outros seres. Ou, pelo menos, como você pode aceitá-las e respeitá-las.
Num estágio mais avançado, você será naturalmente convidado a perceber os limites (e poderes) dos conceitos comuns. Questionará "o que é um universo? O que são muitos? O que significa paralelo?" Enfim.
Qual é o objetivo disso? #
A ideia de multiversos precisa estar baseada numa espécie de compaixão. Mas esse é um termo impreciso que uso apenas para facilitar a comunicação. A palavra certa seria "bodhicitta".
Aqui, não buscamos por uma explicação final, uma super segurança, uma "timeline sagrada". Não tentamos parecer espertos porque entendemos uma lógica oculta. E, claro, não procuramos uma oportunidade de vender novos produtos.
Mais importante ainda, é dito que esse tipo de conhecimento não é acessível por meio apenas do raciocínio. É preciso meditar seriamente para navegar por esse processo.
É por isso que imagino que, Mulholand Drive, filme de David Lynch, ou 2046, de Wong Kar-Wai, talvez entendam melhor de universos paralelos do que Loki.
Mas não sei, não assisti.
Os personagens ficam todos juntos, reunidos numa pessoa só?
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