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Colidindo com Lacan

Por Eduardo Fernandes.

Jacques Lacan

Livro: Lacan Ainda: testemunho de uma análise Autora: Betty Milan Avaliação: 5 (de 10).


Falar sobre sua própria análise é um pouco como contar sonhos: por mais interessantes que sejam, é difícil empolgar outras pessoas. É que faltam sempre contextos, imagens e até mesmo palavras para expressar esses momentos de, digamos, expansão de consciência.

Tanto o sonho quanto a análise (e a meditação, claro) passam por um mergulho no tédio e também no assombro de descobrir como você funciona, na repetição, nos detalhes cotidianos.

A descoberta de padrões simultaneamente pessoais e universais, a degustação dos paradoxos e a conciliação de dualidades, tudo isso se passa num nível que desafia a palavra e a linearidade.

Assim, quando alguém se propõe a contar os sonhos e a análise, há um certo risco de criar uma narrativa um tanto anêmica ou, pelo menos, desconectada do leitor.

O que esperar do livro #

A psicanalista Betty MilanTudo isso para reconhecer a coragem de Betty Milan. No livro, ela não só relata vislumbres de sua análise, como ainda explica alguns dos métodos do seu analista. No caso, apenas um dos mais icônicos do século 20: Jacques Lacan.

De alguma forma, o texto deve ajudar estudantes de psicanálise. Porém, não deve sustentar o interesse de curiosos buscando causos sobre o controverso Jacques Lacan. Não que o livro seja técnico. Pelo contrário, é um relato muito pessoal sobre a trajetória da, então, jovem adulta Betty Milan.

Coisa de paulista? #

Lacan Ainda, é uma interessante demonstração dos desafios que mulheres intelectuais e filhas de imigrantes enfrentavam no Brasil dos anos 70. Mas, especialmente, é um “livro paulista” — se é que isso é existe.

Por um lado, mostra a luta contra as limitações culturais do Brasil, como o machismo e a xenofobia, que já apareciam entre as crianças, em escolas. Por outro, relata a tentativa de encontrar uma terra prometida na França.

E é por isso que esse fenômeno me parece particularmente paulista.

Em São Paulo (e em alguns lugares do Rio de Janeiro), o culto à França já foi tão forte que parte das elites se cumprimentava em francês, nas ruas. Até camponesas holandesas eram “importadas” para se passar por prostitutas francesas de luxo. Sem falar na missão francesa que ajudou a fundar a Universidade de São Paulo.

Assim, é muito compreensível que, no livro, Milan manifeste apego ao Rio Sena e asco ao Tietê. E que tivesse alguma culpa de abandonar tradições indígenas e africanas, que aprendeu de empregados da família e do contato com o norte e nordeste do país.

Além disso, Milan é filha de libaneses. Durante sua criação, teve que lidar com bullying, sendo chamada de “turca” (uma ofensa bastante séria, já que os libaneses foram perseguidos pelos turcos). Esse tipo de situação, é claro, cedo ou tarde, aparece na terapia.

E o Lacan? #

Novamente, se você espera um livro de anedotas sobre o psicanalista francês, talvez você se decepcione com Lacan Ainda. Ele aparece mais como uma espécie de herói, disposto a enfrentar os padrões de armação e autoengano de Betty Milan. Seja deixando de cobrar ou cobrando duramente pelas sessões. Seja cortando ou estendendo a duração dos encontros, além dos limites genéricos estabelecidos por associações de psicologia.

Aliás, Milan, durante todo o texto, se esforça repetidamente para justificar e explicar esses métodos. É que Lacan costumava interromper as sessões bruscamente, assim que julgasse que o analisando chegara a algum insight. Assim, o corte causava um efeito amplificador, já que, naturalmente, a pessoa continuaria pensando sobre o assunto e sobre o significado daquela interrupção.

Enfim, se Lacan Ainda não é um livro particularmente técnico, nem anedótico, traz algo, talvez, mais interessante: o vislumbre do que foi ser mulher, classe-média e filha de imigrantes, na São Paulo (aspirante a cosmopolita) dos anos 70. E que mulher incrível, diga-se de passagem.


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