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Com a cabeça nos EUA

Por Eduardo Fernandes.

Transcrição #

Recentemente, surgiu a oportunidade de trabalhar por um mês nos Estados Unidos. Por sorte, minha introdução ao país aconteceu em Austin, no Texas, cidade que hospeda o South By Southwest, um festival de música, cinema e tecnologia, bastante influente até há uns 3 ou 4 anos.

Até há 10, Austin tinha alguns dos aluguéis e impostos mais baratos dos EUA. Então, atraiu muitos artistas e gente que não estava (exatamente) interessada em se tornar rica e poderosa. Isso fez com que surgisse uma cultura local relativamente progressista (para os padrões do Texas), vários comércios locais estranhos, bizarros e divertidos. A cidade parecia viver numa espécie de universo próprio, criado a partir das lembranças dos anos 70 e dos anos 90.

Por volta dos 2000, os tech bros, da Califórnia, começaram a fugir para Austin, o que fez os aluguéis subirem substancialmente e a cultura local diluir, ganhando uma cara mais parecida com a do Vale do Silício. Então, hoje, a cidade vive uma espécie de luta interna para manter suas raízes contraculturais. Inclusive, há um slogan local que diz Keep Austin Weird, "Mantenha Austin Estranha". Mas está perdendo espaço para o mundo da competitividade, da disrupção, da mentalidade de consertar o mundo a golpes de empreendedorismo absolutista.

Quando estive lá, me lembro de ter dito para alguém: "agora entendo porque os EUA invadem o resto do planeta". Era uma brincadeira com o fato de que, realmente (em Austin, pelo menos), você ainda se sente seguro, relativamente livre e confortável. A comida era excelente (lembrando que sou vegano), as pessoas cordiais e tudo parecia funcionar com algum grau mínimo de eficiência. E, há apenas alguns dias, eu acabara de sair do Rio de Janeiro, onde, diariamente, encontrava com camburões pretos, cheios de policiais viajando com metralhadoras encostadas em janelas abertas. Ou seja: foi fácil ficar deslumbrado com Austin.

Hoje, lembrei-me da cidade, ao assistir, finalmente, ao Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson. Como você deve saber, é uma história sobre dois jovens crescendo nos anos 70, no San Fernando Valley, na época em que a Califórnia era mais folclórica, tinha um ar de liberdade, de esquisitice. E, apesar de ser algo tão particularmente branco e norte-americano, o filme tem um tom nostálgico que contaminou críticos pelo mundo todo.

Ver esse filme agora, enquanto acontece o conflito na Ucrânia, teve um sabor amargo. É que, diariamente, vejo muitas pessoas se indignarem (justamente) com a manipulação cultural que existe na Rússia, na China e na própria Ucrânia. Mas me pergunto se nós realmente entendemos o que é ser manipulado, o quão profundamente as nossas percepções, desejos e identidades ficam completamente estruturadas em torno de certos valores impostos.

Se nós nos emocionamos e também sentimos nostalgia com Licorice Pizza, não é só porque Paul Thomas Anderson é um grande cineasta. É porque somos parte da contínua formatação cultural norte-americana no planeta. Crescer no Brasil, nos anos 70, foi muito diferente de crescer num bairro branco, na mesma época, na Califórnia. Ainda assim, é provável que nos identifiquemos muito mais com Licorice Pizza do que com filmes semelhantes, falando do Brasil. Se eu tenho apego à Austin e rejeição ao Rio de Janeiro, em boa medida é porque, consciente e inconscientemente, minha cabeça vive nos EUA. Ainda que eu pense que rejeito o imperialismo dos EUA do pós-Segunda Guerra.

Então, quando falamos em manipulação por censura, ditadura e repressão, não podemos nos esquecer que há instrumentos muito mais eficazes de controle: o amor, a nostalgia, o sentimento de heroísmo, o desejo de crescer na vida, entre tantas coisas. O controle não se exerce só pelo medo, mas também pela esperança.


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