Por Eduardo Fernandes.
Mais um documento sobre o Sofrimento da Condição Artística (SCA). Dizendo assim, parece algo trágico. E é.
Pense em conviver diariamente com uma inquietação e descontentamento, procurando seu próprio estilo, seus assuntos e sua maneira de expressá-los. Mesmo que você consiga encontrá-las, mesmo que seja respeitado e até faça fama e dinheiro, você nunca está feliz.
Esse é parte do SCA, que, feliz ou infelizmente, ainda não é uma doença classificada nos manuais de psiquiatria. Em certos círculos, tende a ser valorizada como uma espécie de mal necessário. Ou uma insalubridade, risco da profissão: entregadores do Amazon têm que mijar em garrafas na rua pra não perder tempo, artistas precisam sofrer pra produzir arte "profunda". Ambos são (potencialmente) mal pagos e não têm muitos direitos trabalhistas.
Se isso é basicamente verdade hoje, imagine no Japão da Era Edo. Hokusai, o mangá, é um esforço de um dos maiores e mais prolíficos quadrinistas japoneses, Shotaro Ishnomori, de imaginar a mente do ainda mais influente e produtivo mestre da ilustração e narrativa visual, cujo pseudônimo mais conhecido foi Katsushika Hokusai.
Ao todo, Hokusai usou cerca de 9 pseudônimos durante seus 90 anos de vida. É que ele mudava de nome, local e estilo de vida sempre que se sentia estagnado em seus esforços artísticos. Um pintor nômade, hora rico, hora extremamente pobre, hora famoso, hora desconhecido, tentando encontrar sua arte perfeita, enquanto deixava um rastro de familiares e amigos em segundo plano. Mais uma das possíveis características dos casos extremos de SCA.
No mangá, Shotaro Ishnomori retrata Hokusai como um homem descontente e mau humorado, que só encontrava alívio na companhia feminina, no sexo, e em pequenos momentos de "aquisição" artística (que logo seriam criticados e abandonados).
Talvez um psicólogo perceberia que Hokusai foi abandonado pelo pai, quando criança (o que é retratado de uma forma brilhantemente tangencial no mangá). Assim, durante toda sua vida, o desenhista viveu num loop, abandonando tudo, em busca de uma (auto) aprovação que nunca surgia.
E, como é o caso de muita gente que se sente pária, Hokusai era especialmente capaz de se conectar profunda e compassivamente com prostitutas, bandidos e com a natureza. Não só por meio da arte, mas também interpessoalmente.
O nome do mangá poderia ser algo como "Fragmentos de Hokusai", já que a história navega por épocas diversas da vida do artista, sem muita preocupação com a linearidade. São causos, nos quais nem sempre Hokusai é o protagonista, atuando como comentarista ou observador. De bônus, você infere algumas das reflexões "teóricas" sobre materiais e desenho, que surgem nas conversas entre o artista e seus discípulos.
Ishnomori mostra porque é considerado um mestre dos mangás. Suas estratégias narrativas, enquadramentos e cuidado com detalhes são impressionantes. E, por algum motivo, os traços da figura de Hokusai parecem ficar cada vez mais rabiscados, rápidos e caricaturais, conforme ele envelhece. Em particular no capítulo 9, que é um dos mais bonitos da obra, narrando o encontro do artista com sua última musa, aos 90 anos.
Hokusai influenciou vários pintores europeus, como Van Gogh, Toulouse-Lautrec, entre outros. Suas pinturas, como A Grande Onda de Kanagawa, se espalharam por todos os cantos (e mídias) do mundo, superando até mesmo a fama do autor. Um dos seus estilos principais, o Ukiyo-e, virou até uma espécie de sinônimo de Japão. Porém, Hokusai parece ter morrido descontente, ainda buscando algo.
Mais uma potencial característica do SCA, que ainda é vista com algo nobre, um fardo, uma contribuição pra humanidade. Mas quem sabe por quanto tempo?
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