Por Eduardo Fernandes.
Transcrição #
Uma das coisas que a pandemia nos ensinou, é que viver num só espaço é uma ilusão. Abstratamente, vivemos no Brasil. Politicamente, isso significa que temos que obedecer a certas leis federais. Porém, na prática, nós vivemos em múltiplos espaços interdependentes: o estado, a cidade, o bairro, a Internet e a sua bolha dentro dela. Todos eles têm suas leis, escritas ou não.
Alguns desses espaços colidem uns com os outros ou se sobrepõem a eles. Por exemplo, se você tem uma conta no Facebook, você é um brasileiro que faz parte de um tecno-proto-estado multinacional, assim como várias bilhões de outras pessoas. O presidente não-eleito desse local cheio de regras e mecanismos políticos se chama Mark Zuckerberg.
Você não pode fazer o que quer dentro do Facebook. Nem mesmo o governo brasileiro pode. E é muito fácil detectar, impedir ou impulsionar uma atividade política dentro desse aplicativo. Ainda que pareça simples deletar sua conta, para muitos usuários, sair desse tecno-proto-estado pode causar vários problemas, até econômicos.
Outro exemplo de como o mundo digital virou um cenário importante politicamente, é Elon Musk, que, a partir de uma mensagem no Twitter, pode causar reações no capital financeiro mundial. Quem regula Elon Musk? O governo norte-americano? O dono do Twitter?
Quer dizer: se a globalização já havia complicado a ideia de Estado Nação, as tecnologias digitais deixaram as coisas ainda mais caóticas. Porque, ao passar tantas horas dentro desses ambientes virtuais, ao fazer tantas transações por ali, nossas vidas externas começaram a, se não a perder importância, pelo menos ter que dividir nossa atenção, tempo e dinheiro com a digitalidade. Alguns ideólogos da web3.0, já estão propondo até que troquemos a burocracia estatal, tipo Cartório de Notas, pelo Blockchain.
Isso é o que chamo de “mutação de escala”. A política ficando simultaneamente mais micro e mais macro. Ou seja: se uma eleição é importante para o país e para o mundo, ela também se reflete nos ambientes digitais. Não se trata só de eleger um político, mas também um futuro fenômeno digital, uma narrativa de mídia com a qual teremos que lidar no futuro. E, consequentemente, uma oportunidade de negócios para certas corporações, já que o político virou influencer, e os influencers causam cada vez mais efeitos políticos.
Mudança na percepção da cidade e do outro #
Os inúmeros aplicativos, que entregam cada vez mais conveniência na porta das nossas casas, influenciam a classe média e a elite a interagir cada vez menos com a cidade, seus personagens e suas políticas.
A cidade vai se transformando numa espécie de abstração, uma ameaça ou um incômodo. Assim, as elites perdem a ideia do que significa lidar diariamente com outros estilos de vida e, assim, enxergam a política apenas como algo ineficiente, não como o gerenciamento cotidiano da convivência entre pessoas diferentes.
As elites acabam observando as outras classes por meio dos ambientes digitais e pela mídia. Ou pelo comportamento subserviente dos empregados, que chegam, prestam um serviço rápido e logo desaparecem.
Então, na melhor das hipóteses, se tornam patrões educados e respeitosos, mas que não entendem, profundamente, o que é conviver com outra parte da cidade, outros estilos de vida, não imaginam o que significa ter que funcionar num outro mundo econômico e social. São cordiais com funcionários, mas desvalorizam-nos e humilham-nos diariamente, esperando atenção imediata para os seus desejos, a qualquer hora do dia.
É a lógica do aplicativo aplicada aos seres humanos: se eu clicar, quero eficiência, agora. Isso também é projetado no próprio político profissional: ele é o meu palhaço, meu seriado, meu meme. Cabe aqui apenas escolher o candidato que atrapalhe menos, como quem pressiona um botão: tudo deve funcionar. Tenho nada a ver com isso. Não sou parte do que está errado.
Já que não conhecemos a cidade, nem o Estado, e, na verdade, nem mesmo como funcionam os aplicativos, só sabemos do nosso desejo por conveniência e eficiência imediata. Deixamo-nos guiar por essas ideias ingênuas, as quais o mundo digital está cada vez mais nos viciando. Elites passam a pensar a política como se ela fosse uma startup: vamos “resolver o problema” do Estado. Mas o que isso tem a ver com aprender a conviver e negociar constantemente uns com os outros?
Então, essas são apenas algumas questões de espaço e de escala que o mundo digital trouxe para a política e para as eleições. Não se trata apenas de mudar um presidente, mas de influenciar um ambiente simultaneamente expandido e fragmentado. Brasil não é mais apenas um país, é também um espaço virtual. Os políticos e eleitores também são avatares, cidadãos de um universo complexo não só global, mas também digital.
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