Por Eduardo Fernandes.
Transcrição #
Note como a figura do herói, o macho-alfa, o empreendedor, o carismático, aquele que enfrenta corajosamente um grande obstáculo vem se tornando cada vez mais influente. Essa visão romantizada e atualizada da metáfora de Davi contra Golias é cada vez mais sedutora.
De modo complementar, desprezamos a metáfora do burocrata, do técnico, aquele que resolve as coisas via planejamento, diálogo, fazendo concessões estratégicas, perdendo aqui para ganhar ali. Não há nada mais chato, menos engajante.
Adoramos a narrativa do "unidos venceremos", lute ao meu lado, vamos criar disrupção. E detestamos a narrativa do "espere aí", quais serão as múltiplas consequências das nossas ações?
Nas últimas décadas, às vezes por motivos muito justos, fomos sistematicamente convencidos a desconfiar das instituições, da política e da negociação.
Mas preenchemos o espaço do vácuo da confiança com elementos ainda mais problemáticos: a tecnologia, os líderes populistas e as reações emocionais.
Tentamos ignorar que cada um desses itens também esconde suas próprias centralizações, burocracias e ineficiências.
De qualquer forma, queremos manter a adrenalina, o buzz, a excitação de estar envolvido numa luta, de estar do lado certo, de combater o mal.
É interessante notar como os heróis de histórias em quadrinhos, como os da Marvel e DC, ainda permanecem populares. Deles, assimilamos a vibe de empreendedorismo, de empoderamento, de desrespeito (consciente ou inconsciente) às regras. A energia que destrói uma cidade inteira com o pretexto de "salvá-la", que mata centenas de empregados, até chegar a um supervilão.
Mas, há décadas, os quadrinhos em si já exploram a ambiguidade da função do super-herói. Você deve se lembrar de Watchmen, de Alan Moore, um dos clássicos nessa área. E, talvez, Batman seja o exemplo mais óbvio. Seria ele uma espécie de psicopata? Será que piora a violência que diz combater? Muitos autores já exploraram essa problemática. Não é que os produtores de quadrinhos sejam tão ingênuos e maniqueístas.
Na atual situação do mundo, vemos que o discurso do suposto herói carismático, aquele que quer vencer agora, na base do empreendedorismo (e do sacrifício alheio), está cada vez mais popular.
Ele apela para o desejo de que as coisas sejam simples, de que seja possível "vencer" e "ganhar", quando, na verdade, qualquer ação gera consequências, muitas vezes a longo prazo. O que parece vitória hoje pode significar séculos de sofrimento para muitas pessoas. O que parece agora derrota pode evitar um mal maior.
Mas, como diz Nassim Nicholas Taleb, no livro Antifrágil, não sabemos valorizar aqueles que, cotidianamente, evitam catástrofes. Não damos medalhas para aqueles que, sem ninguém perceber, apagam uma fagulha que poderia ter se transformado num incêndio. Apenas reconhecemos o bombeiro que arrisca a vida no meio do fogo.
Talvez o cenário internacional esteja sugerindo que seja a hora de procurar metáforas melhores do que a de Davi contra Golias.
Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.