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Devolva minha honestidade

Devolva minha honestidade

Por Eduardo Fernandes.

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Representação de Loki, o deus dos golpistas.

Me engana que eu gosto. Esse é o perfeito título de um episódio sobre desonestidade do podcast de Aline Valek. Nele, a escritora fala sobre bandidos folclóricos, espertinhos, golpistas, de Mazzaropi e Macunaíma até Loki, o deus da trapaça.

A ênfase vai para o banditismo individual, para o estilo de vida. Mas há muitos outros aspectos desse assunto.

Por exemplo, o filosófico: até que ponto é possível ser honesto? Considerando que somos obrigados a usar a linguagem, cheia de imprecisões e vieses ocultos, não estaríamos apenas condenados a refinar constantemente a percepção do que causa mal aos outros?

O engano e o autoengano são ferramentas de aprendizado. Já a honestidade está mais para um compromisso existencial, uma aspiração. Não é uma lista de procedimentos coerentes e infalíveis.

Há também o viés cultural, civilizatório. Basicamente, significa que sabemos que seremos enganados em quase todas as nossas relações -- especialmente as econômicas. Mas ok. Daremos um jeito. Essa é uma espécie de ignorância tática, um contrato de tolerância mútua.

Pense nos contratos que "aceitamos" ao usar certos serviços tecnológicos. Nas bulas de remédios. Em entrevistas de emprego. Nos cartões de crédito. E, hoje em dia, no consumo de informação online. É certo que alguém, em algum grau, vai nos passar para trás.

Não há lei ou sistema de moderação perfeitamente capaz de nos manter seguros. E a escala do problema se agiganta a cada dia. Em especial porque o capitalismo nos ensinou a desejar "crescer", gameficar a vida, falar com mais gente, de maneira mais rápida e automática.

Parece contraditório, mas até mesmo a ideia de nicho passou a funcionar sob a mesma lógica: "foque seu trabalho cada vez mais... para crescer", "limite seus produtos... para atrair mais gente". Otimize cada detalhe. Absolutamente tudo deve "estar alinhado" com seus planos de expansão.

No fundo, é essa valorização cultural do crescimento que torna cada vez mais difícil combater a desonestidade. As plataformas online ampliam a velocidade de penetração e aumentam o alcance tanto dos pequenos golpes quanto da desconfiança generalizada. Vide a eleição de 2022 no Brasil.

Mas a otimização total expansionista também incita a desonestidade. Por exemplo, o Spotify é acusado de incentivar a criação de artistas falsos, para embolsar parte dos royalties. A lógica é: de onde posso tirar ainda mais uma oportunidade de lucro? Então surgem artistas fake, fake news, falsos mortos-vivos. Parece que vivemos num mundo governado por Loki.

Nas últimas décadas, muito se falou sobre a pós-verdade. Mas, aparentemente, a sociedade sempre foi baseada na tensão entre confiança e paranoia. A história da cultura passa pela reinvenção contínua das técnicas para lidar com a trapaça -- da Retórica até a Economia Comportamental.

Até porque também não podemos confiar na confiança. Seu excesso leva a fanatismo, fascismo, cultos, etc. Muitas vezes, ela só se consolida depois da repetição sistemática de muitas mentiras e de manipulação contínua. Acha que acabou? Lembre-se de que é possível ser um fanático da desconfiança.

Bem-vindo ao bug da linguagem.

Esse é um dos motivos pelo qual se diz que o samsara não tem conserto. É como se fôssemos um bando de macacos arrogantes esbarrando uns nos outros, tentando ser felizes por meio das causas da infelicidade. E, então, quando nossos planos se frustram, gritamos, criamos leis, escrevemos livros, startupeamos aplicativos.

Para muitos de nós, é espantoso, inaceitável até, que as pessoas acreditem em certas fake news, que cultuem certas personalidades. Como pode? Como não enxergam o óbvio?

Pelo mesmo motivo que caímos nos juros do cartão, na gameficação das redes sociais, nos aplicativos gratuitos bancados por venture capitalists, etc. Me engana que eu gosto. Lido com isso depois. Alguma vantagem eu tiro daqui, por enquanto.

É claro que é uma obrigação individual e civilizatória lutar por transparência, honestidade e um sistema ágil de combate à pilantragem. Mas, enquanto valorizarmos o crescimento, apenas aumentaremos a escala da desonestidade. É como tentar conter um vazamento jogando mais água.

No capitalismo, não há sequer como imaginar algo além da proliferação sistemática dos pequenos (e grandes) golpes. Porque, no processo da expansão econômica, gradualmente, você perde a sensibilidade à ética. Passa a perseguir metas cada vez mais abstratas. Tira o pé do planeta. Desvia o olhar direto da retina alheia, para escaneá-la coletivamente e coletar "dados". Assim, desconectada da repercussão imediata das suas ações, a própria pessoa pode não conseguir mais enxergar que se tornou golpista.

É por isso que até mesmo os cambalacheiros clássicos, como Pica-Pau, Mazzaropi, Loki, etc., são um tipo diferente de banditismo. Eles, pelo menos, sabem que estão num caminho perigoso e desonesto -- o que, no limite, possibilitaria o arrependimento e a mudança de rumo.

Muitos empresários nem mesmo têm o "privilégio" da culpa. Afinal, o capitalismo tardio propaga não só o "me engana que eu gosto" como também o "enganar é útil" e "não há nada além do gerenciamento da trapaça".