Por Eduardo Fernandes.
Trem da CPTM, na periferia de São Paulo.
São Paulo, 02 de outubro de 2022, 8 da manhã.
//Plim.//
Aqui estou mais um dia, sob o olhar entediado do vigia.
//Plim.//
Diferentemente do clássico dos Racionais MC's, o guarda era apenas o da CPTM. Eu partia de Jundiaí para votar em Pirituba – bairro do noroeste de SP onde cresci e vivi por 28 anos.
Apesar de morar há 15 na Serra Gaúcha, nunca transferi minha zona eleitoral. Alguma parte de mim não aceita romper o vínculo com a periferia de SP.
No trem, meu narrador compulsivo interno queria transformar a votação num road movie. Ou melhor: rail movie. Mais uma vez eu teria de escorrer pelas veias ferroviárias abertas daquele pedaço de América Latina.
Novamente observaria a velha dinâmica entre homem e natureza. O mato tentando retomar o espaço roubado pela CPTM. As árvores abraçando os cabos de eletricidade. Fungos criando padrões no concreto. Mais um pedaço de plataforma corroída pelo tempo.
A dinâmica humana também surge nas incoerências de arquitetura e design. As estações são um testemunho do convívio entre diferentes eras da tecnologia e das mudanças de valores estéticos. Em menos de meia hora, você passa da art déco para a Bauhaus. Do grafite evangélico para a propaganda esquecida num display sujo.
E a arqueologia não para. Desenterra figuras políticas esvaziadas de lembrança, como Baltazar Fidélis e Franco da Rocha. Expressões indígenas descontextualizadas, como Botujuru (“Boca dos Ventos”) e Perus (“à força”). Ou nomes singelos como "Vila Clarice".
Dentro do trem, eu me pegava no velho costume de temer pelos meus pertences e de desconfiar de todas as pessoas. Viéses, preconceitos e hábitos.
Mas, agora, o medo era diferente. Antes, temíamos que roubassem nossos celulares. Hoje, que roubem nossas mentes.
A pessoa à sua frente pode estar lendo (ou ouvindo) mensagens de grupos de extrema-direita. Que tipo de desinformação passa por aquele fio e vai para os ouvidos?
Observando minha própria mente, tudo era julgamento e construção de personagens. “Aquele ali só pode ser bolsonarista. Deve estar a caminho de cometer um crime contra o planeta”.
Respiro. O pensamento volta para onde saiu.
Essa é tragédia que ideologias extremas causam: mesmo os que tentam não ser adeptos acabam contaminados. Afundam no clima de desconfiança, animosidade e medo.
A velha paranoia do sapiens demens se amplia ainda mais. Então, é preciso lidar com a metaparanoia de ter de ficar atento aos pensamentos extremistas surgindo na própria cabeça.
Como olhar para as pessoas e ouvir seus medos? Como enxergar além da bravata? Em especial porque ela é constantemente ampliada pela desinformação cotidiana circulando via tecnologia. Como conseguir rachar a parede de raiva e de discursos simplistas?
Infelizmente, não será agora, nos 45 do segundo turno, que seremos capazes de bloquear o desejo de consumir e espalhar desinformação. Isso foi cultivado por décadas. O desejo pela conveniência e pelo “gratuito” começa a cobrar sua conta.
“Leia essa revista para parecer mais inteligente”, chame aquele “especialista” para falar no telejornal, “você só tem 5 minutos para dizer o que precisa”, “tem que caber em 100 palavras”, “para vender, é preciso criar um produto que fale para a emoção das pessoas”, “seja espontâneo”, “consiga mais seguidores”, “crie um aplicativo formador de hábito”. “Grite mais alto!”
Ao longo dos anos, houve um cultivo sistemático de ambientes propícios à proliferação da extrema-direita. Uma composteira do ódio.
Agora, nos vemos praticamente obrigados a usar as mesmas ferramentas para remediar uma tendência mundial de radicalização. No processo, somos contaminados pela urgência, velocidade e lógicas da comunicação em rede.
A ausência de auto-reflexão, a recusa a olhar “para dentro”, é o que nos torna, também, extremistas. E amplia a paranoia mútua. Nos transforma em criadores de narrativas, sozinhos, isolados, imaginando de onde virá a próxima tragédia. Daí a necessidade de procurar uma comunidade de paranoicos para chamar de sua. Ou um herói salvacionista… o mito, o macho alfa.
Não. Nós somos a vida, como as árvores, os fungos, o tempo. Ninguém precisa se limitar à pseudo organização do pensamento de aço e concreto.
Enfim, no sistema de som do trem, ouço um lick de guitarra, seguido por uma voz feminina: “estação Pirituba, desça pelo lado esquerdo do trem”. Pelo menos isso, a saída não é pela direita.
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