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Dirija meu tempo

Por Eduardo Fernandes.

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Transcrição #

Você é uma pessoa que toma atitudes e enfrenta desafios logo de cara, ou espera um tempo, pensa direito e, às vezes, prefere até se omitir? Não responda ainda. Como sempre, a resposta depende muito da época e do tipo de sociedade em que você nasceu.

No passado, algumas culturas tendiam a valorizar a capacidade de autocontrole e de esperar o tempo certo para agir. Hoje, boa parte da cultura contemporânea valoriza reagir prontamente, de modo intempestivo e lidar as consequências depois.

Você se lembra do antigo "mova-se rápido, quebre as coisas?", slogan que o ex-Facebook aposentou faz algum tempo? Pois é. De certa forma, ele ainda faz parte do espírito da nossa época.

Não é por acaso que aplicativos como o Twitter, TikTok, programas no estilo "react", mensagens instantâneas, timelines, entre outros produtos culturais rápidos e disruptivos, são tão populares.

Imagine se, num universo paralelo, surgissem produtos baseados em esperar, evitar reagir, etc.


Uma análise de verdade desse assunto teria que estudar como outras culturas pensavam sobre tempo. Os estudos mais populares sempre passam pela mitologia grega, na qual existia, por exemplo, a distinção entre chronos (o tempo do relógio) e kairós (o tempo adequado para agir).

Mas é claro que não só os gregos pensaram nisso: o confucionismo, o cristianismo, budismo, indígenas e tantos outros sistemas de pensamento trataram do assunto: quando é melhor agir e quando é melhor segurar a onda.

Sem falar que, ainda hoje, correndo em paralelo a todo o discurso supostamente científico, há toda uma rede de conhecimentos tradicionais que também são usados para gerenciar o tempo. Antigamente, alguns de nós chamávamos esses sistemas cognitivos de “superstições”. Mas eles ainda são influentes.

Por exemplo, no Brasil, em 1964, o golpe militar quase foi adiado porque o General Carlos Guedes não queria iniciá-lo durante a lua minguante, o que, supostamente, levaria a operação ao fracasso. Há vários relatos sobre personalidades do mercado financeiro que consultam astrólogos antes de tomarem decisões importantes.

Se você pensar bem, muita gente até usa estatísticas, Inteligência Artificial e até mesmo análises ditas científicas como uma espécie de horóscopo ou consulta xamânica. Elas não entendem exatamente as complexidades dos dados, mas querem apenas algo que dê uma certa garantia psicológica de que elas estão agindo corretamente, na hora adequada.


Enfim, não é fácil gerenciar kairós. Mas eu contei que esse não é, exatamente, o assunto do episódio de hoje?

Eu queria chegar mesmo no filme Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi. Baseado em alguns contos de Haruki Murakami, foi um dos filmes mais premiados de 2021. Ele conta a história de, pelo menos três pessoas que, por motivos diferentes, perderam a mão no kairós.

O primeiro é um diretor de teatro de cerca de 50 anos, casado com uma roteirista mais jovem, a Oto. Ela tem o pitoresco costume de criar e ditar seus textos enquanto faz sexo. Isso faz com que ela tenha uma relação bastante quente e feliz com o marido. Porém, logo descobrimos que ela tem um amante: um ator jovem, famoso e bastante intempestivo.

Certo dia, o marido pega os dois transando na cama. Mas sai de fininho, passando despercebido. Continua sua vida normalmente, sem nunca tocar no assunto com Oto. Aos poucos, descobrimos que Oto tinha várias outras relações extraconjugais, o que ajudava a alimentar sua escrita. Basicamente, ela espalhava fragmentos das suas histórias, começando num amante e terminando em outro.

Certo dia, Oto convoca o marido para, finalmente, contar sobre suas vidas paralelas. Porém, quando ele chega em casa, encontra Oto morta, vítima de um AVC. A partir de então, desenvolve uma enorme culpa de nunca ter se aberto com Oto, de nunca tê-la conhecido de verdade.

Depressivo, o marido aceita um trabalho bem longe de casa, em Hiroshima, para dirigir a clássica peça Tio Vania, de Anton Chekhov. Lá, conhece uma jovem de 23 anos, que será sua motorista pelo resto do filme.

Os dois vão desenvolver uma caso amoroso, certo? Errado. Lembre-se de que este é um filme japonês, baseado em Haruki Murakami, mestre em contradizer clichês da cultura pop.

O que vemos é o desenrolar de uma curiosidade mútua entre os dois personagens, uma amizade desenvolvida mais pelo ato de ouvir do que pelo de falar.

O diretor de teatro descobre que, assim como ele, a menina carrega uma enorme culpa por demorar (ou se recusar) a agir no momento certo. Mas eu não vou entrar em detalhes para não dar ainda mais spoilers.

Acha que acabou? O jovem ator famoso, amante de Oto, ressurge em Hiroshima, tentando atuar em Tio Vania. O marido reconhece o garoto, mas acaba o contratando.

Aos poucos, descobrimos que o ator não estava, realmente, interessado na peça. De alguma forma, ele queria se aproximar do viúvo para saber mais sobre Oto. Então, estabelece-se uma dinâmica entre os dois parceiros da mesma mulher misteriosa. Um dos momentos mais interessantes do filme é quando os dois descobrem os fragmentos das histórias que ela lhes contava durante o sexo, afinal, se complementavam.

Porém, diferentemente do diretor e da motorista, o amante era bastante intempestivo e violento, em especial quando alguém tirava fotos dele, na rua. Numa dessas ocasiões, ele acaba ferindo mortalmente um dos seus fãs e acaba sendo preso.

Enfim, deixe-me parar por aqui, que o episódio já está enorme e chronos está bufando no meu cangote.

Eu só queria recomendar esse filme, como uma reflexão bastante profunda sobre o gerenciamento de kairós. A incapacidade de agir (ou de deixar de agir) no momento adequado, leva a consequências fatais para todos os personagens.

Será que, quando focamos apenas em velocidade e reatividade, de alguma forma não estamos nos destreinando, perdendo a percepção dos sinais sutis que nos informam a hora certa de agir e de nos omitir? Que real vantagens a velocidade nos traz?