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Doenças da conveniência

Por Eduardo Fernandes.

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Aos poucos, os ciberataques começam tomar o lugar do terrorismo “tradicional”. São grupos ou técnicas que se escondem nos pontos cegos da sociedade e que, periodicamente, submergem, causando um tremendo caos.

A fórmula do terrorismo #

  1. Atacar o sentimento de segurança da sociedade, revelando a fragilidade escondida no gerenciamento de serviços essenciais, como alimentação, transporte e energia.
  2. Manter a aura de mistério, mas, ainda assim, ser identificável. Por exemplo, os ataques à JBS foram atribuídos ao REvil. Não sabemos quem são seus integrantes, mas, de alguma forma, somos capazes de definir alguém ou um país como inimigo.
  3. Sentimento de urgência. Se não nos protegermos logo, mais problemas surgirão.
  4. Precisamos sacrificar-nos, perder liberdades, conceder poderes àqueles que se declaram responsáveis por nos defender (aplicativos, corporações, instituições do Estado).
  5. Esses “protetores”, de modo geral, usam ataques terroristas como momentos-chave para mudar paradigmas, implementando novas políticas de vigilância e controle.

Aterrorizados #

Ataques como o do REvil são uma espécie de subproduto de três fenômenos:

  1. Alienação — Com a globalização e expansão da economia, tudo fica naturalmente mais complexo e interconectado. Então, há uma disseminação cada vez mais rápida da ignorância: não sabemos de onde vem a comida, os chips dos computadores, as consequências ambientais das nossas rotinas, etc.
  2. Externalidades — Para sustentar a conveniência da alienação, precisamos delegar os custos e prejuízos do nosso estilo de vida para camadas menos privilegiadas da sociedade: negros, imigrantes, escravos, etc. E também para máquinas, cujo funcionamento também ignoramos. Porém, imaginamos que alguém cuidará disso.
  3. Monopólios — Esse alguém, de modo geral, é uma corporação ou o Estado. Consequentemente, quando estes são atacados, muitas pessoas são afetadas simultaneamente. Não é um fenômeno localizado, que atinge apenas uma pequena comunidade.

Assim, o terrorismo (digital ou não) é, essencialmente, uma doença da conveniência e do crescimento: comunidades gigantescas, muitos processos gerenciais abstratos, múltiplas camadas de alienação. Muitos pontos de fragilidade a serem explorados.

Simplesmente funciona. Só que não #

É claro: gostamos quando alguém simplesmente resolve os nossos problemas. De Deus até o entregador da Amazon. Até nos dispomos a algum nível de compromisso: pagar boletos, rezar alguns minutos por dia.

Também exercemos um papel no contrato social da conveniência: às vezes, nós somos o resolvedor dos problemas alheios. Você cuida da minha ignorância e eu da sua.

Isso deveria funcionar.

Deveria.

E funciona. Ainda assim, existem inúmeras falhas e consequências invisíveis no gerenciamento da conveniência. O tempo todo. É isso que grupos como o REvil revelam: vivemos numa frágil ilusão de eficiência. É uma espécie de transparência forçada.

E então? #

Ataques terroristas e hackings sugerem vários tipos de ajustes numa sociedade. Mas, geralmente, implementamos apenas um: colocar mais um cadeado na porta, delegar mais poder para alguém (Estado ou corporação).

Por que não investigar outras alternativas? Por exemplo:

  1. Diminuir o tamanho das corporações.
  2. Descentralizar o gerenciamento dos processos, o que traria um efeito similar ao de ter muitos motores num avião (se um falha, outro assume o trabalho).
  3. Adaptar processos a contextos mais adequados para cada comunidade.
  4. Investir em desalienação.
  5. Garantir a diversidade na prestação de serviços essenciais.
  6. Proteger a diversidade de demandas. Por exemplo, se há lobby e marketing para consumirmos as mesmas coisas, maior é o alcance dos ataques às corporações.

E ok. Paro por aqui. Estes são pontos de vista que trazem os seus próprios problemas. Essencialmente, é o clássico debate entre autogestão e controle institucional. Em outras palavras, as pessoas realmente conseguiriam se informar e implementar soluções melhores que as corporativas?

Como sempre, fica um grande não sei.

Ainda assim, eu gostaria que você saísse com, pelo menos, uma ideia desse texto: a de que delegar mais poder e criar mais pontos de alienação são soluções ilusórias. Elas geram ainda mais pontos frágeis, exploráveis por terroristas. Ou por sequestradores de dados.