Skip to main content
eduf.me

E aquele TikTok do Platão?

Por Eduardo Fernandes.

Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.

Há escritores que eu adoraria que tivessem produzido pra plataformas digitais.

Um bom exemplo é Jorge Luis Borges. Outro dia, lendo a transcrição de sua palestra sobre As Mil e Uma Noites, a cada parágrafo, eu quase rezava por links pra Wikipedia. Não só pra decodificar melhor o texto, mas também pra satisfazer as curiosidades que iam surgindo.

Borges, definitivamente, não é um autor linear. Seus textos têm aquela qualidade de devaneio, de milhões de citações borbulhando em todos os cantos, o que irrita muitos acadêmicos e jornalistas. O escritor argentino deve ter batido algum recorde de número de assuntos por frase.

Imagine se ele tivesse escrito seus ensaios num blog old-school, como o do Cory Doctorow. Seria o inferno dos links. Texto todo sublinhado. Iria se parecer com uma revista do David Carson nos anos 90.

Não estou criticando, apenas imaginando.

Como seriam as contas de Twitter dos aforistas Sir Francis Bacon (@NovumOrganum) e Sêneca? Ou o canal de YouTube, estilo video log, de Santo Agostinho (Confissões)? O podcast de Karl Marx? A newsletter fluxo de consciência de Samuel Beckett (failbetter.substack)? Aristóteles ensinando via Zoom? E o Instagram motivacional de Nietzsche?

Parece um absurdo, não? É que os autores quase sempre acabam associados, delimitados, empacotados, protegidos e atacados, graças às mídias nas quais escrevem. É difícil explicá-lo sem entrar… no Mundo Abstrato.

Vamos lá.

---- Portal para O Mundo Abstrato ----

(Neblina, frio, escuridão, cheiro de umidade e sons de gritos primais, bem ao fundo. Imagine que meu texto agora tem uma reverberação cavernosa.)

Os usuários das mídias produzem vários “ambientes”, visuais, linguísticos e sociais. Estes podem ser antagônicos: o canal de um esquerdista pode ser bem diferente do de um direitista. Mas, no fundo, são parecidos. Porque há uma percepção comum de como é um vídeo no Youtube (cabeças falantes, ritmo acelerado, certa “informalidade”).

Assim, tendemos a dizer: aquele autor “não pertence” ao formato Youtube. Seria um absurdo vê-lo ali. Ou engraçado simular sua participação naquele mundo que lhe é alienígena. Portanto, toda plataforma, previamente, já imprime sua marca num autor. Seja de respeito ou de escárnio.

Imagine o TikTok do Pink Floyd. Apenas saber que a banda estaria naquele ambiente já engajaria nosso sistema moral: “A banda se vendeu? Ou se reinventou? Quem vai fazer dancinha pra Shine You Crazy Diamond?” (Lembra do vídeo sobre o Fleetwood Mac? Então…)

Esse é o fenômeno do pré-consumo, que é o consumo da polêmica sobre o produto, antes mesmo que você chegue efetivamente a ele. Julga-se o livro pela capa, o conteúdo pela plataforma. A plataforma pelo que é mainstream nela. Do ponto de vista das empresas de tecnologia, o pré-consumo é mais lucrativo do que a obra em si.

Engraçado é que os líderes religiosos mais conhecidos da humanidade foram adeptos das instruções orais e conferências presenciais públicas. Ainda assim, seus ensinamentos foram compilados e massificados por alunos, via escrita. Só então é que as situações polêmicas, tanto políticas quanto intelectuais, cresceram de verdade.

É o velho problema do escalonamento: quanto mais gente recebendo um determinado conteúdo, sem a possibilidade da interação um a um, mais a coisa fica perigosa. O pré-consumo ganha mais prioridade.

---- Saída d'O Mundo Abstrato ----

Enfim, já escrevi demais. E não é que eu tenha, exatamente, uma tese pra defender neste texto. Inspirado pelo Borges, estou me dando o direito de pular de um canto pro outro, meio à deriva.

Eu só queria mesmo dividir essa curiosidade: como seria a comunicação dos famosos comunicadores do passado, no nosso ambiente de descomunicação comunicativa e de comunicação descomunicativa.

Sé é que isso faz algum sentido.