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Escritor perna de pau

Escritor perna de pau

Por Eduardo Fernandes.

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Todas as imagens desta edição foram feitas pelo MidJourney, tecnologia de Inteligência Artificial.

Futebol é uma das mais eficientes tecnologias de mobilização popular. Mas, por algum motivo, não funciona comigo. Tentei reinstalar o aplicativo algumas vezes ao longo da vida e nada. Sempre crasha. (Já voltarei ao assunto.)

Na sua forma orgânica — quer dizer, fora dos videogames —, o futebol vem com um sério problema de usabilidade: precisa ser jogado coletivamente. Isso dificulta a experiência de onboarding para tímidos, neurodiversos ou pessoas com pouca coordenação motora.

É uma atividade que facilita a prática de bullying. Também pode incitar discursos ofensivos e fake news (falsas contusões, etc.). Apelidos derrogatórios abundam. As políticas de privacidade e termos de uso tendem a ser nublados.

A pressão dos pares pode ser bem pesada, mesmo em atividades recreativas, conhecidas como “peladas”. E como no Brasil, supostamente, todos entendemos de futebol, esse pode ser um ambiente bastante tóxico para usuários iniciantes ou não-proficientes, os “pernas de pau”.

Politicamente, o futebol também é polêmico. Isso aparece até numa canção popular sobre o assunto, do grupo Demônios da Garoa.

Assim nosso time de futebór vai mal Nossos jogador são tudoSão tudo uns perna de pau Só contratemo quem não sabe nem jogá Parecemo mulher de malandro, só sabemo é apanhá

Note a metáfora, demonstrando um ambiente machista e violento.

Mais os curpado, são os nosso diretô Que não dão aos jogadô Assistência, morá nem materiá Se nós tirá em urtimo lugar A curpa é do ténico, que num sabe orientá.

Evidentes problemas gerenciais e de direitos trabalhistas.

Bola, vai, bola, vem Nosso time, entra bem Não se sarva ninguém, da derrota Será possíver, como é que pode Desse jeito eu morro A torcida grita, grita E os nosso jogador,Num fazem nem um gorro.

Ansiedade, derrotismo e desespero. É preciso falar de saúde mental no futebol.


Imagem surrealista gerada por IA sobre a copa.

Dividir a bola significa outra coisa #

Disse que iria falar sobre minhas experiências com essa tecnologia, então vamos lá.

Conta-se que meu avô era um excelente jogador. Tinha pernas tortas, como Mané Garrincha. Falava o mesmo dialeto das músicas dos Demônios da Garoa. Inclusive seu irmão se chamava Ernesto, quer dizer, “Arnesto”. Pior: eles moravam no Brás.

Quando jovem, passou fome na cidade de Campo Largo, interior de São Paulo. Teve a ideia de entrar para o exército para conseguir alguma renda. Chegando no famigerado Quartel de Quitaúna, alistou-se no time de futebol local.

Fez fama. Os oficiais lhe pagavam um salário extra para que participasse de todos os campeonatos. Assim, começou a juntar dinheiro para financiar aquela que seria a casa onde cresci.

Então é isso: de alguma forma, devo minha vida ao futebol.

Meu pai manteve a tradição. Mas não a do exército. No futebol, também era bastante requisitado, só que em ambientes civis. Também serviu em Quitaúna, mas era meio insubordinado e arrumava muita confusão com os sargentos.

Não teve o espírito empreendedor — e a sorte — do meu avô. Sofreu um acidente, que lhe comprometeu um dos joelhos. Lembro-me do cheiro de Gelol pela casa. E de assistir ao meu pai sentado no chão do quarto, contemplando um aparelho que emitia luzes infra-vermelhas nas suas pernas. Resolveu virar goleiro. E assim permaneceu até o fim da vida.

Ah, esqueci de dizer que até mesmo seu nome veio de um antigo jogador de futebol, idolatrado por meu avô.

Enfim, era de se esperar que o DNA esportivo da família se manifestasse em mim. Mas desviou para meu irmão.

Quando eu era criança, meu pai me deu um boneco de pano de Serginho Chulapa, um polêmico jogador bad-boy paulista. Dele, segui apenas o exemplo do cabelo black power.

Sempre preferi natação, esse esporte meio psicodélico e imersivo. Até porque tenho um pequeno defeito na formação das minhas orelhas que, durante a adolescência, dificultou minha participação em esportes enfaticamente coletivos. Além do bullying estrutural do futebol, tive que lidar com esse extra.

Ainda assim, meu pai insistiu em passar o legado que recebeu dos ancestrais. Fazíamos ginástica semanalmente, no Pelezão. Eu fugia do futebol. Mas, lá pela pré-adolescência, não consegui segurar a vontade de agradar ao velho. Ou a culpa de decepcioná-lo.

Decidi jogar de verdade. Nada de pelada na esquina. Matriculei-me num clube que, mais tarde, seria o centro de treinamento do Palmeiras. Era um compromisso oficial. Tudo o que eu precisava era de uma chuteira. Pois fomos juntos comprá-la. Meu pai era a felicidade em pessoa.

Corta para meu dia de estreia nos campos.

O clube era uma casa de madeira, ao lado da estação de trem de Pirituba. À frente, havia um campo de dimensões profissionais e de gramado perfeito. Parecia gigante. Cruzá-lo andando já seria trabalhoso, imagine correndo.

Não se via uma só mulher em toda a região. Parecia um universo 200% masculino. E quente. E suado. E sujo. Mas eu tinha uma chuteira Topper. Era um Hétero Topper. Imaginei que só isso já evocaria algum tipo de força patriarcal, o tal Espírito Esportivo.

Na casa de madeira, o "ténico", apesar da fama de não saber orientar, entendeu que minha vocação estava nos esportes aquáticos. Aparentemente, resolveu me conceder uma posição menos urgente para o jogo, lateral esquerdo (se soubesse da relação da minha família com os militares, talvez tivesse me colocado à direita).

Entrei em campo, resignado. Meia hora depois, entendi que deveria correr e não ficar ali, parado, assistindo. Em vez de evitar a bola, deveria fazer algo com ela. E não era compartilhar, distribuir entre os pobres, essas coisas. Dividir, aqui, tinha outro significado.

Voltei para casa arrasado. Falhei em manter a tradição. Meu pai estava visivelmente decepcionado, mas tentava dissimular. Culpado, resolvi desistir do futebol. Então, o velho, que era chegado a atitudes grandiosas, confiscou e vendeu minha chuteira. Nunca mais falamos sobre o assunto.

O futebol só voltou a ser importante na minha vida anos depois. É que, na escola, as aulas de educação física eram obrigatórias. E eu nunca aparecia nelas. Por sorte, a professora também não.

Ocasionalmente, ela surgia com uma planilha e perguntava sobre mim. E uns colegas sempre diziam: "ele estava aqui, batendo uma bola com a gente, mas foi ao banheiro". Quatro anos e eu sempre no banheiro. A professora deve ter imaginado que eu sofria de algum tipo de diarreia cósmica e se compadeceu. Nunca fui reprovado na sua matéria: sempre surgia um caridoso B no meu boletim.

Enfim, talvez, o tal Espírito Esportivo realmente me protegia.