Por Eduardo Fernandes.
Dr. Distopia: Alô?
Eduf: Oi. Sou eu de novo.
DD (respirando fundo): ...
E: Sei que ando ligando muito fora do horário das sessões...
DD (sarcástico): Que bom que você percebeu isso. Notou também que são 2 da madrugada?
E: É que eu acho que estou ficando maluco.
DD: De novo?
E: Dessa vez é sério. Eu não consigo me lembrar mais das coisas que eu leio.
DD: Ok. Não sendo boleto ou sinal de trânsito... Você vai sobreviver.
E: Por exemplo, eu sei que estou puto, mas não me lembro mais a respeito do quê. Arthur do Val, Viagra para os militares, aquecimento global, guerra na Ucrânia, reforma no apartamento... Não consigo mais ligar a raiva ao motivo, entende? Quando abro um site de notícias, por exemplo, é quase como se minha visão se nublasse e tudo se tornasse uma coisa só.
DD: Então o problema é estar genericamente puto, é isso?
E: Sim. É. Indignado eu estou, isso é fato. Mas com o que, exatamente? Já começo a confundir as histórias e os nomes.
DD: Mas não confunde o sentimento de putosidade.
E: É. Fico o dia inteiro claramente puto.
DD: E você acha que se sentiria melhor se conseguisse organizar sua indignação, separar os assuntos, direcionar as energias para cada caso... Já tentou kanban? Scrum? Agile? Microsoft Teams?
E: Não sei se vai funcionar.
DD: Ué. Mas você não quer resolver os problemas para passar a raiva?
E: Não exatamente. Nem sei como fazer isso. Me sinto incapaz.
DD: Hmm... Então que tal simplesmente ignorar certas notícias?
E: Não, aí não. Seria um alienado.
DD: Então você quer continuar indignado?
E: Bom. Eu não diria isso. Mas, se não tenho como mudar a realidade, pelo menos preciso reclamar, certo? (Longa pausa.) Na verdade, nem sei mais como é viver sem estar genericamente puto.
DD: Quer dizer que ficar puto te traz alguma segurança?
E: Hmm...
DD: Traz uma espécie de alívio?
E: Será que dá pra chamar isso de alívio?
DD: Você que me responda.
E: Estou confuso. Acho que desenvolvi uma nova doença mental, tipo miopia de indignação, “mioputopia”.
DD: Mioputopia...
E: Tem uma coisa meio compulsiva também. Eu só procuro notícias e situações para ficar nervoso e frustrado. Só falo disso. Só penso nisso.
DD (sarcástico): “Distúrbio obsessivo miotópico”.
E: Estou falando sério. Virei um urubu da Internet.
DD: Compreensível. As notícias não estão fáceis mesmo.
E: Mas eu estou falando de uma toxidade tóxica, sabe?
DD: Hum...
E: Por exemplo: se alguém pega o elevador comigo e puxa assunto sobre o tempo, vou acabar falando sobre desastres, bombas atômicas, digo que tem uma mancha na pele da pessoa que pode ser um câncer, falo sobre as últimas armações dos políticos...
DD: Não lhe ocorre nem uma coisa agradável para dizer?
E: Não!
DD: “Seu cabelo está bonito, hoje”...
E: Eu diria: “você sabe que tem petróleo e uma série de químicas perigosas no seu xampu?”
DD: Entendo.
E: Você acha que estou maluco?
DD: Não. Você está apenas desbalanceado.
E: Como assim?
DD: Está acompanhando demais um tipo específico de mídia. Isso treinou seu cérebro para ficar puto apenas no genérico. E procurar mais coisas que vão deixá-lo assim. É como um vício.
E: E existe outro tipo de mídia, é?
DD: Deve existir. Eu não conheço. Mas deve existir.
E: Então preciso fazer algum tipo de detox?
DD: Nah. Nesse ponto, você criticaria o detox também. E iria ficar procurando conspirações por trás das técnicas ou professores de detox.
E: Então o que eu faço?
DD: Na verdade, não sei. Mas posso te passar o telefone de um mídiapraxista.
E: Como é?
DD: Mídia-praxista. Vai realinhar algumas das suas sinapses. Vai tentar ligar indignação à resolução de problemas - quem diria? E colocar as coisas em perspectiva.
E: E isso existe? É confiável?
DD: Não sei. Mas, considerando que os placebos são os remédios mais eficientes do planeta, não custa tentar, né?
E: Isso me cheira a falcatrua.
DD: Pois é. Falcatrua genérica. Onde quer que você olhe, vai ver uma.
E: Me passa o contato disso.
DD: Claro.
E: Só mais uma coisa.
DD: O quê?
DD: Aceita plano de saúde?
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