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Hackeando a Espiritualidade

Por Eduardo Fernandes.

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Transcrição #

Não dá para negar que a gente está assistindo a uma segunda onda da corrida espiritual nos países capitalistas.

Peraí, eu explico.

A primeira corrida espiritual cresceu lentamente desde o século 19, mas meio que ficou famosa ali nos anos 60 e 70 e foi associada aos escritores beatniks e aos hippies.

Nessa época, parecia que, quanto mais a cultura se secularizava, ficava anti-teísta e, supostamente, científica, mais a espiritualidade se diversificava.

Quer dizer, surgiam grupos que misturavam e resignificavam várias tradições e religiões vindas de diversos cantos do planeta, como a Ásia e a África.

Aos poucos, a gente passou a acreditar que espiritualidade virou uma coisa de escolha pessoal, até de nicho. Em tese, ninguém estaria condenado a viver de acordo com as crenças dos seus familiares.

E então a pessoa poderia ser um leitor de teosofia, praticar diversas linhagens de ioga, se engajar em releituras do taoismo e até do estoicismo. Tipo um free-market.

Já a segunda onda da corrida espiritual vem se misturando ainda mais com a ideia de lifehacking. Quer dizer: são técnicas para facilitar a vida.

E o que significa isso: para diferenciar seu estilo pessoal, ser aceito por uma comunidade, passar por experiências interessantes ou até curar traumas e doenças.

É uma mistura de pragmatismo, de automedicação e até de entretenimento e moda.

E estou tocando nesse assunto porque comecei a ler o livro Spirit Tech, cujo subtítulo eu vou traduzir aqui como "o Novo Mundo do hackeamento de consciência e da engenharia da iluminação".

Parece piada, mas é um estudo sério. Pelo menos como um mapeamento da corrida espiritual, tal como ela aparece em 2021. Ou seja: juntando substâncias psicodélicas, estímulos elétricos no cérebro, tanques de privação sensorial e produtos que prometem "acelerar" o processo de meditação.

Conforme eu for lendo, vou esmiuçar melhor esse assunto. Mas, antes, eu queria chamar a atenção para uma outra coisa.

Pegue, por exemplo, um livro como o Karma Pop, do jornalista Arthur Veríssimo. É um documento fotográfico impressionante do mega festival espiritual da Índia chamado Kunba Mela. Lá, você vai notar que a espiritualidade sempre usou tecnologia e algum tipo de hacking.

Por exemplo, Sadus passam cinzas no corpo por vários motivos, dos mais filosóficos, tipo lidar com a morte, até os mais prosaicos, como afastar insetos.

Porém, por trás dessas técnicas, há todo um contexto, uma espiritualidade, um conjunto de valores voltados para algum tipo de transcendência. Um questionamento da vida.

Quando nós transplantamos as ferramentas espirituais da Ásia para o mundo capitalista, geralmente muitas coisas acabam se perdendo ou se adaptando.

E isso por um motivo muito evidente: nós ainda somos completamente judaico-cristãos.

Até mesmo os ateus muitas vezes deixam de enxergar que o cristianismo não é só uma instituição, como a Igreja. É o fundamento de muito das nossas lógicas, da nossa linguagem e das nossas expectativas. É o ar que respiramos.

Assim, não é que a gente viva numa crescente diversidade e até fragmentação religiosa. É um pouco como ir ao supermercado: você encontra 200 marcas de pasta de dente, mas são todas da Gessy Lever.

Quando você usa técnicas de índios, africanos ou asiáticos para ampliar a mentalidade de eficiência, se quer hackear a iluminação, o que você está praticando é o cristianismo, e filtrado pelo capitalismo. Esse é o nosso ambiente cultural espiritual.

Quando você se baseia na espiritualidade para construir uma identidade pública, "eu sou assim, eu me comporto desse jeito", liberdade é mostrar quem eu sou, você está praticando um desenvolvimento das técnicas da confissão cristã. Bom, pelo menos, era nisso que o filósofo francês Michel Foucault acreditava.

Enfim, por enquanto, fica aqui essa provocação: quando falamos sobre espiritualidade, ou até de tecnologia espiritual, é importante olhar quais são os valores e filosofias por trás disso. Senão é como comprar o mesmo produto, só que numa embalagem nova.

Citados no episódio #