Skip to main content
eduf.me

Hedonismo tecnológico

Por Eduardo Fernandes.

Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.

Cena do filme Pi, de 1998.

Imagino que você já tenha se pegado pulando de uma tecnologia para a outra, mudando de sistemas operacionais, de aplicativos, de procedimentos de trabalho. Ou configurando, vendo tutoriais, "testando" novidades. Horas e horas procurando o software e a experiência de usuário perfeita.

É uma espécie de prazer misturado com dor. É angustiante, mas você não larga. Quer resolver o assunto. Thriller tech.

Ou um jogo. Você tenta deduzir as regras (sem ler os manuais). Depois, desvenda a narrativa daquela tecnologia, que história ela conta -- que nem sempre é a mesma que a empresa fabricante tenta lhe vender. Passamos por fases, vencemos desafios, enfrentamos "chefes".

Aos poucos, participamos de uma construção de mundo. De alguma forma, é um micro exercício de consumo de ficção. O Twitter tem uma "twiteridade", o Substack, uma "substaquesidade" e por aí vai.

Se Madame Bovary usava romances como escapismo, nós também usamos UX (User Experience) para, supostamente, fugir de certas partes das nossas mentes. Ocupar-se para não ser ocupado pelas mumunhas da nossa personalidade. Mas elas ainda se manifestam por meio das expectativas e medos que criamos em torno de plataformas. Esses "lugares" dos quais nos jogamos aos tubarões ou saltamos para a próxima embarcação.

Mas pense nas civilizações anteriores às nossas. Pense no incrível arcabouço de tecnologias que se perderam, hoje enterradas em algum assentamento. Será que sequer teríamos capacidade imaginativa para compreender a relação que humanos desenvolviam com suas ferramentas?

Nós, que (acreditamos que) somos capazes de separar técnica, religião e emoções, que vivemos completamente limitados pela obsessão de vender, comprar, crescer, desempenhar e abandonar, será que sequer entenderíamos os múltiplos significados de uma simples faca de pedra?

Provavelmente, alguns geeks das antigas ficavam ansiosos pelo próximo arado, pelo novo modelo de telescópio, etc. Tentavam "configurar" suas ferramentas. Inovar -- essa palavra tão questionável, que merece uma análise mais profunda.

Durante muitos anos, era possível encontrar pessoas que se dedicavam à criação e manejo de ferramentas como se fossem verdadeiras vocações ou missões de vida. Criar um sapato não era tão diferente de desenvolver arte. A cultura do aprendiz e o desejo de aprofundar habilidades (até mesmo como um caminho espiritual) impedia que surgissem fenômenos como os atuais layoffs. Ferramentas descartáveis, pessoas descartáveis.

Não que eu tenha tempo de pesquisar agora. Mas seria interessante traçar uma história do prazer sensorial / intelectual que os humanos extraem do uso de ferramentas e workflows.

Talvez isso nos ajudasse a entender como chegamos ao atual estágio de hedonismo tecnológico, filho da eugenia da Segunda Guerra Mundial. Quer dizer, o desejo de "se mesclar" com a tecnologia, implantar coisas no corpo, harmonizar aparências, encontrar o software perfeito, mapear cada canto do planeta, até chegar em limites que, talvez, você só encontre nos filmes de David Cronemberg.

Quem sou eu para julgar?

Esse é um assunto para outra oportunidade, já que, hoje, como se diz na terapia, o tempo já acabou.