Por Eduardo Fernandes.
Alô. Ainda se lembra de mim? Prazer, sou Eduardo.
Fiquei duas semanas sem publicar por motivo de fogo-no-rabo: acabei de me mudar para a Califórnia, EUA.
Pelo menos até julho, estou numa cidade minúscula chamada Cazadero (foto acima), no meio das montanhas do condado de Sonoma, perto de San Francisco. É uma coisa meio Twin Peaks, mas (aparentemente) sem tanta gente estressada. E foi o próprio processo de mudança que me trouxe o assunto de hoje.
Vamos lá.
Nos aeroportos de países como EUA e Inglaterra, quase sempre os agentes de imigração são estrangeiros ou claramente descendentes de. É uma cena meio surreal: um imigrante tentando impedir que outra pessoa se torne imigrante. Quer dizer, que faça o mesmo que ele (ou sua família) fizeram no passado.
O imigrante é uma figura central para qualquer império, em dois sentidos:
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Quando se torna cidadão, serve como um validador, alguém que “venceu” (pelo menos a burocracia).
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Porém, sempre será uma espécie de outro, carregará a lembrança constante — e o medo — da diversidade. Um brasileiro descendente de asiático sempre será chamado de japonês ou chinês, mesmo que tenha nascido no Cambodja. Será frequentemente lembrado da sua alteridade e também marcado com uma identidade, mesmo que não seja a sua.
Os colonizadores foram uma espécie muito particular de imigrante: o invasor, aquele que excluiu os nativos primordiais e tomou para si o direito de definir o que fazer com os próximos visitantes.
O invasor “desnativiza”, “renativiza” e define quem será cidadão dali em diante. Indígenas não puderam colocar um agente na fronteira, perguntando: “o que o Sr. veio fazer aqui? Quanto dinheiro tem? Sr. Pizarro, seu visto não lhe permite trabalhar nesta terra”.
Diversidade é o normal #
No próprio voo que peguei de Nova Iorque para San Francisco, sentei-me entre um chinês e um indiano. E havia uma família de cariocas à frente. Cada um falando seu idioma. Mas usando produtos norte-americanos, cujos CEOs também são imigrantes (pense na Microsoft, em Elon Musk, no Google, etc.). A indústria da tecnologia, em especial, depende seriamente dos estrangeiros.
Como em Roma, o Império norte-americano é uma construção política, claro, mas especialmente simbólica. Ainda que haja polícia, exército, leis e fronteiras vigiadas, muitos dos postos de poder são exercidos por estrangeiros. Portanto, acreditar que existe um Império é fundamental para que ele funcione. Ou seja: é preciso se focar na centralização, e não na diversidade.
Esse é um exemplo de como as ideias de monopólio e centralização são imprecisas e precisam se reconstruir constantemente. É uma narrativa em constante decadência, corroída pela diversidade, natural dos sistemas vivos.
Muita energia e trabalho são despendidos para nos fazer temer e, claro, amar a mentalidade imperial, que se baseia nos mitos de “limpeza”, “simplicidade”, “organização” e “previsibilidade”.
Os futuros do futuro #
Na verdade, eu queria falar sobre outra coisa.
Pense no atual cenário do mercado de tecnologia. Agora só se fala sobre Inteligência Artificial, que já é um nome centralizador para diversas lógicas e aplicativos radicalmente diferentes.
Mas a nossa mentalidade imperial vai ainda mais longe. Ela se intromete até na maneira como definimos problemas.
Por exemplo, há quem acredite que o ChatGPT veio desorganizar o sistema da atual Internet monopolista, em especial o do Google. Então seria uma tecnologia libertária? Não exatamente, considerando que foi financiada por empresas e figuras igualmente centralizadoras: Elon Musk, Peter Thiel, Microsoft… o pessoal de sempre.
Quer dizer, é complicado. Não podemos simplesmente declarar heróis e bandidos aqui. Ainda assim, para falar sobre IA, usamos o mesmo discurso usado para validar e defender impérios: IA promoveria descentralização e conveniência. A mesma conversa atribuído à web1, 2 e 3.
É de se espantar que ainda caiamos nela. Além do green washing, convivemos com o freedom washing, convenience washing. Ou algo assim.
O combustível da Internet #
Porém, ainda que a Inteligência Artificial tenha nascido do dinheiro monopolista, as tecnologias generativas ainda dependem de nós. São escaneadoras de Internet. Seus textos, imagens e sons são produzidos a partir de criadores como eu e, talvez, você. Assim como acontece com a web2.
Nós somos o verdadeiro combustível de tecnologia. Não é preciso esperar pelas tubulações da Matrix sugando nossa medula.
O monopólio se diz todo-poderoso. Mas, cedo ou tarde, revela o quão desorganizado e frágil é, em suas entranhas. Portanto, precisa corrigir a narrativa.
E sempre segue a mesma lógica: o medo (e a cegueira) da diversidade, a promessa da conveniência e da excelência. Faça tudo no mesmo lugar, seja protegido da complexidade, não queira tomar suas próprias decisões.
Por um lado, muitos dos serviços da atualidade estão, realmente, hospedados no Amazon Web Services, Microsoft Azure ou Google Cloud. Mas, por outro, a Internet ainda é formada por estrangeiros tomando conta de estrangeiros para manter a ideia de que existe um império seguro.
Por isso, toda vez que leio algo que tenta prever “o futuro” da web, do emprego, etc., meu instinto ranzinza se revolta: J'Accuse...! É que não existe um futuro, existem vários. E em constante regeneração. Porém, a mentalidade imperial e monopolista precisa criar modas e tendências para se oferecer como solução.
Floresta mundial, não rede #
A web foi criada a partir da metáfora de rede, de teia, de fios interconectados. Mas é muito mais que isso: é uma floresta, cheia de diversidade caótica, criativa, mas sempre no limite de destruir a si mesma.
Se há uma força monopolista, há inúmeras “forças” fragmentadoras e desestabilizantes. As coisas crescem como podem, tomam caminhos inesperados, às vezes simbióticos, às vezes predatórios.
Não importa quantos agentes de imigração coloquem nas fronteiras da Internet, sempre acharemos uma gambiarra.
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