Por Eduardo Fernandes.
Baseado numa foto de Valeria Zoncoll, via Unsplash.
Hoje uma amiga me mandou um vídeo que me deixou intrigado.
Ela teve uma filha há cerca de um mês. E, com todas as boas intenções do universo, pegou seu celular e filmou a bebê. No vídeo, só o rosto da criança aparece. Olhos gigantes, boca entreaberta e uma expressão de curiosidade.
Os dedos da mãe surgem. Acariciam as bochechas da bebê: “dá um sorriso pro tio Eduf”.
A criança parece não entender muito bem o que está acontecendo. Mas não se assusta. Após algumas cócegas, finalmente sorri. E minha amiga fica satisfeita.
Bem-vinda ao mundo da performance em frente de telas.
Hoje, o broadcasting vem antes da alfabetização. Ou melhor: antes mesmo de aprendermos a articular palavras.
Em sua curta vida no planeta, nem deve ter sido a primeira vez que a bebê enfrentou uma câmera. Deve ter participado de vídeos pra familiares distantes. Ou, talvez, até faça lives diariamente pra alguns deles.
Parece trivial, mas é um fenômeno e tanto.
Muitos de nós vimos nossos rostos pela primeira vez num espelho. Ou num reflexo distorcido numa janela. Hoje, vemos numa tela de celular. Já com uma audiência pra entreter.
Antes mesmo de saber o que é um computador, a criança já intui que está dentro dele. Nunca o nome de um aparelho foi tão adequado: iPhone. Eu e o fone estamos intrinsecamente ligados.
GenXers, como eu, cresceram entendendo a tecnologia como algo externo. Uma tela preta com a qual você precisa se relacionar. O computador é o “outro”. Você aprende a usá-lo. E por meio de um processo que envolve disciplina, resiliência e jogo de cintura.
Eu mesmo, pra poder ter acesso a um computador, precisava pegar um busão e ir até à Escola Estadual Jairo Ramos. Lá, participávamos do curso do professor Eugênio. Usávamos mais réguas fluxograma do que teclados. E ninguém conseguia ver seu reflexo nas telas de fósforo.
As crianças de hoje já nascem se vendo digitalizadas. Bebê OLED. A alimentação vem do peito, a validação vem do aparelho. Se olho pra ele e sorrio pro tio Eduf, minha mãe fica feliz. Só falta um ringtone de sucesso.
É dito que o psicanalista Jacques Lacan criou sua tese sobre o estágio do espelho em 1936. Seria uma fase entre os 6 e os 19 meses de vida de um bebê. Pelo contato com sua imagem num espelho, ele começaria a intuir e reconhecer uma identidade corporal.
Em 2023, o estágio da tela chega antes da fase do espelho. Talvez, logo após o parto.
Antes da identidade corporal, vem a midiática. A identidade de broadcaster. O avatar junto com o corpo.
E o reconhecimento de que sua vida está intrinsecamente ligada àquele objeto retangular. Você precisa gerenciar o que entra e sai dali.
Então é isso: seja bem-vinda ao mundo, bebê. Nós somos sua audiência.
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