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Kama Sutra Biohacking

Kama Sutra Biohacking

Por Eduardo Fernandes.

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Outro dia, me dei ao trabalho de espiar o que aconteceu na CES 2024. É um mega evento, no qual a indústria da tecnologia lança produtos, aponta tendências e faz previsões ambiciosas. Desta vez, os destaques foram as energias renováveis e, especialmente, o chamado biohacking.

Enquanto eu assistia à empolgação dos CEOs e marketeiros apresentando novos aparelhos de medição, controle e melhoria corporal, não conseguia parar de pensar no velho Kama Sutra.

Não é que estava imaginando que muita gente iria se “feder” pra sustentar esse universo cheio de gadgets. Ou seja: mais plástico, mais alumínio, mais garimpeiros derrubando florestas pra achar matéria-prima pros microchips, mais consumo de energia pra manter servidores armazenando dados e estatísticas.

Tem isso, claro. Mas eu estava pensando em como o Kama Sutra é um dos maiores manuais de biohacking já documentados.

Muita gente acha que é só um livro de putaria. Não exatamente. Por um lado, é um guia prático pra usufruir de prazeres físicos, sem ficar escravo deles. Por outro, traz ferramentas e fórmulas pra melhorar o desempenho do corpo e da mente.

O filósofo Vātsyāyana, a quem o Kama Sutra é atribuído, não deixa de ser uma espécie de Andrew Huberman da Índia clássica.

Claro, Huberman baseia suas dicas de saúde na ciência moderna, com seus métodos, convicções e contextos. Vātsyāyana operava segundo outro sistema de crenças e expectativas culturais. Mas, às vezes, eles soam tão parecidos.

Por exemplo, segue uma dica de beleza, direto do Kama Sutra (numa tradução dos anos 1980, pro Círculo do Livro):

Para se fazer bonito

Unguento faça das folhas

de loendro,

o fragrante costus

e a ameixa anã,

a beleza cem vezes aumentando.

(...)

Óleo de acanto, salsaparrilha,

serralha, paina

e lótus azul, uma grinalda

de suas pétalas,

seu charme aumentará.

No geral, as técnicas do Kama Sutra são plant-based, ou comportamentais: saia em tal hora do dia, mova sua perna pra lá, a cabeça pra cá e há grandes chances de tunar esse corpinho cansado.

Agora, como seria a famosa rotina matinal de Huberman, se fosse escrita no estilo do Kama Sutra?

Para se fazer resiliente e energético

Antes do sol você deve acordar

olhe para a luz por 10 minutos,

é a atividade primeira do dia.

Depois, num copo de proporções adequadas

misture sal mossoró de boa precedência.

Sal comum, você deve evitar

pois dele é extraída a força vital.

Qualquer receio, você deve abandonar

e mergulhar seu corpo nú

em água pura, coberta com gelo.

Fique ali, inspire uma vez longamente

e depois rapidamente.

Expire. Os pulmões você deve esvaziar.

Repita.

Isso aumentará sua satisfação

afastará os maus agouros

e fará surgir boas enzimas em seu corpo.

Vários minutos por dia você deve caminhar.

Pelo menos 3 horas por semana

sem deixar-se levar pela pressa:

ande rapidamente, mas apenas até o ponto certo,

quando não terá mais desejo de falar.

A ofegância deve ser evitada.

Apenas sinta o natural desejo de se calar.

A isso os sábios chamam

Treino de Zona 2.

Aquele que desejar viver por muito tempo

e evitar os dissabores da vida,

assim deve acordar todos os dias.

Já o biohacking dos expositores da CES está baseado em conceitos mais esotéricos: estatísticas, siglas, métodos ainda controversos no meio científico, inteligência artificial e muitos acessórios externos. O contexto cultural, é a mente capitalista, da otimização, da produtividade, da expansão territorial e espiritual do ego.

Nesse ponto, os lançamentos da CES diferem completamente do Kama Sutra. O texto indiano faz parte de uma visão de mundo muito mais complexa. A pessoa deve buscar conhecimento, entender as mecânicas da vida prática (educação, administração, economia, política) e, a partir daí, usar sabiamente os prazeres. Não é um simples clique aqui e nós cuidamos de tudo.

Não sou praticante de tradições védicas. Mas acho incrível como outras sociedades evitavam separar a sabedoria do prazer e da administração do corpo. Você até poderia fazer uma poção e aprender uma técnica, mas, antes, era esperado que você se perguntasse por quê.

Será que isso também acontece na CES e eu é que não enxergo?

Imagem criada a partir de foto de Robyn Beck/AFP.