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Meditação capitalista

Por Eduardo Fernandes.

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Transcrição do episódio #

Você acredita nas suas percepções? Faz tempo, muito tempo que essa pergunta não é considerada sintoma de loucura. Ela reaparece constantemente em mitos, rituais, religiões, filosofias, ciências e, obviamente, na tecnologia.

Cada uma dessas áreas de conhecimento lida com a desconfiança nas percepções de um jeito diferente. E, assim, surgem diversas práticas, técnicas, objetos e arquiteturas, como yoga, sinos, zendôs, templos, etc.

Por que, então, não surgiria um medidor de qualidade de meditação?

Existe isso? Sim. Chama-se Reflect Orb. É uma esfera de plástico, que o meditador deve segurar entre as mãos (infelizmente, não sai nenhum dragão de dentro dela). A Orb tem uma série de sensores, que, segundo os fabricantes, transformam o aparelho num monitor fisiológico, no estilo smart-watch, e de outras tecnologias vestíveis.

Basicamente, a esfera é um detector de calma. Capta informações do corpo do usuário (“biofeedback”), compara dados e, então, fornece números, que podem ser usados para decidir se a sessão de meditação de hoje “funcionou” melhor ou pior do que a de ontem.

Há pouco tempo, eu me revoltava quando ouvia falar desse tipo de aparelho. É que, como alguém levemente interessado em meditação tradicional, tendo a acreditar que sei bem o que é (ou deveria ser) meditar.

Hoje já (praticamente) consigo entender que diferentes ideologias produzem técnicas meditativas diversas, atendendo a vários tipos de público. Então, se existiram técnicas ligadas a xamanismo, cristianismo, budismo, induísmo, entre outras, por que não surgiria uma meditação capitalista?

Validando a meditação #

E como seria essa meditação? Fazer oferendas com mão invisível, em bitcoins, ao Deus Mercado? Sentar-se na postura de lótus num armazém da Amazon? Aí é que está: as coisas quase nunca são caricaturais e óbvias.

De modo geral, os diferentes estilos de meditação partem da desconfiança nas percepções. E, de alguma forma, usam o corpo como base para uma investigação mais profunda da mente. Utiliza-se a própria percepção para entender como funciona a percepção.

As religiões e práticas meditativas tradicionais costumam fornecer algum tipo de critério “externo” com o qual alguém pode avaliar sua prática: histórias sobre grandes renunciantes ou líderes espirituais, mitos, textos descrevendo níveis de excelência técnica ou estágios de proficiência e por aí vai.

A meditação capitalista faz a mesma coisa. Só que ela fornece telas com estatísticas. E a confiança que temos nesse material se desenvolve por meio de um processo bem interessante.

Fé nos números #

Para a sociedade Moderna, os números são quase fórmulas mágicas. Acreditamos neles sem necessidade de conferir por nós mesmos (o que seria uma confirmação pela experiência).

Pressupomos que haja não só uma “certeza científica” nesses dígitos, mas também que esta foi comunicada corretamente pelo aparelho (a terceirização da confirmação). Esse é um método que demanda muita fé, e fé em vários intermediários e processos interdependentes obscuros.

Essa é a mesma lógica que usamos para acreditar em muita coisa no capitalismo: “os números refletem uma verdade profunda que eu não necessariamente sei interpretar, mas alguém sabe, então é melhor segui-la”.

Que estatística é essa? #

A maioria de nós não sabe minimamente interpretar estatísticas. Em especial quando elas são relacionadas a sistemas complexos, tanto políticos quanto biológicos. Ainda assim, existe uma poderosa versão simplificada de estatística, a estatística pop, que vem traduzida pelo marketing e design de interfaces.

Praticamente guiamos a sociedade baseados nessa crença na estatística pop. Lidamos diariamente com ela, dos perfis em redes sociais até a política, quando nos obrigamos a votar apenas em candidatos com chances de ganhar segundo pesquisas eleitorais (a estatisticocracia).

Assim, a bola de meditação, Orb, está perfeitamente adaptada ao mundo que vivemos. E que tipo de meditadores deveriam usá-la? Shiri Perciger, um dos diretores da fabricante, responde ao TechCrunch:

“Não estamos nos focando em monges Zen, ou naqueles que conseguem se sentar por horas em postura de lótus no topo de uma montanha. Esses têm ´their shit together´, não precisam de nós”.

É um discurso um tanto perigoso: vamos resolver a vida dos leigos, dos apressados, dos perdedores, dos procrastinadores, daqueles que desistem antes de enfrentar maiores dificuldades. E dos que não têm interesse de checar informações experiencialmente, mas precisam de uma validação científica genérica.

Ciência essa que é resumida, interpretada e um tanto “congelada no tempo” pelo marketing da empresa (afinal, poucos teriam a coragem de dizer que suas teses ainda são debatidas por acadêmicos ou que nasceram de metodologia controversa).

Compreensível.

Por nomes mais precisos #

Produtos como o Orb poderiam usar termos mais descritivos do que meditação. Talvez “detectores de eficácia de técnicas calmantes”. Ou algo ligado a relaxamento, para ser mais conciso.

Até porque, como o praticante é encorajado a compartilhar suas métricas na Internet, os aparelhos ajudam a construir uma "marca pessoal" — coisa que outras técnicas meditativas tradicionais certamente sabotariam.

Mas o meu objetivo aqui não é criticar a Orb. A fabricante é bem clara na sua proposta e na definição do seu público alvo, ela não pretende cooptar pessoas buscando um caminho espiritual.

Ao citar o aparelho, meu objetivo aqui é outro: me perguntar se estamos incorporando cada vez mais atividades humanas na Indústria do Entretenimento, na lógica de gamificação. Da política à medicina e espiritualidade, estou enganado ou, a cada dia, tudo se parece mais com um jogo?