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Método Pelé de Subjetividade

Método Pelé de Subjetividade

Por Eduardo Fernandes.

Reciclando um texto foi originalmente publicado em 2013, em homenagem a Edson Arantes do Nascimento, que faleceu hoje.

Outro dia, fui engolido por um desses vórtex de clickbaits e aterrizei numa entrevista de Paulo Miklos. Veja só. Lá pelas tantas, o entrevistador meio que pediu satisfações ao ex (ou atual) cantor do Titãs por usar o plural para falar sobre si. O jornalista não se aguentou. Tinha que haver uma explicação, já que a prática não é, exatamente, aceita nos manuais de redação.

Resposta de Miklos: “É mesmo? Falo no plural? Nem reparei”.

Dias depois, uma amiga me perguntou onde encontrar um artigo que escrevi há um tempo. Brincando, perguntei: “ah, esqueça. É só um daqueles textos sem sentido do eduf”. Ela retrucou: “você sempre fala de si na terceira pessoa?” Tive um Momento Miklos: “é mesmo? E não pode?”

Mas também percebi um trending topic. Além de uma linhagem de revolucionários da primeira pessoa, cujo maior expoente era, obviamente, Edson Arantes do Nascimento. Pelé pode ter sido um jogador lendário. Mas, no futuro (pelo menos para mim), será lembrado como o maior, o mais eloquente separador de personagens de si. Um desagregador nato.

Já explico.

Antes, cabe notar que existe uma tendência meio ranheta na imprensa brasileira de implicar com as conjugações. Como se falar sobre si na terceira pessoa indicasse falsa humildade. Pelo contrário. É uma atitude bastante precisa, eu diria até científica. Vamos chamar essa técnica de Método Pelé de Subjetividade (MPS). Ele implica uma certa compreensão de que, em alguma medida, sempre somos personagens de nós mesmos.

É tipo um efeito V da conjugação, soa estranho, causa certo distanciamento, o que pode ser útil, já que impede que nos reifiquemos completamente. Falar de si na terceira pessoa quebra a quarta parede, por assim dizer. Afinal, todo discurso sobre nós mesmos é uma tentativa de organizar um caos de “outros”, de conceitos incompletos, de circunstâncias em constante mutação, de generalizações e mal-entendidos funcionais.

Num certo sentido, um jeito ainda mais científico de falar de si, seria ter uma claque ao final de cada frase. Sabe aquelas risadas forçadas das séries antigas (digo, dos anos 80, não a Ilíada)? “Hoje estou me sentindo ansioso”. HAHAHAHA. “Eu não me sinto compreendido nesse trabalho”. HAHAHA. “Eu te amo”. HAHAHA. “Eu” quem?

Falando assim, parece desrespeitoso e cínico. Mas não é. Por um lado, falar sobre si é um tanto engraçado, por conta da imprecisão intrínseca à tarefa. Por quanto tempo estou assim? A partir de que ponto-de-vista complexo e temporário? Entende? (Pelé quase sempre também terminava suas frases com um característico "entende?").

De alguma forma, deveríamos ter um mecanismo linguístico que desse uma noção da maluquice que é falar em primeira pessoa. Porque, de modo geral, além de nos considerarmos como uma entidade única, imutável, separada do resto do ambiente, da sociedade, das pessoas e das circunstâncias, ainda tendemos a acreditar que somos particularmente corretos nos nossos diagnósticos, prognósticos e automedicações. Só não rimos dessas coisas porque as fazemos o tempo todo.

É por isso que o mestre zen budista Thich Nhat Hanh prefere usar a expressão interbeing no lugar de “being”. É um termo que dá melhor conta da complexidade do assunto. Mas imagino que não vão aceitá-lo na prova do ENEM.

De qualquer forma, por que deveríamos achar que quem fala de si na primeira pessoa é “mais autêntico” ou “humilde”? Ainda mais nessa época em que cada vez mais pressupomos que a construção de nossa identidade deva ser algo gerenciado, minuciosamente documentado e publicado em servidores na internet. Personalidade se forma em uma sopa primordial, cujos ingredientes juntam estatística, imagens de celulares e metadados. Somos cada vez mais coletivos. Industrialmente coletivos. Science!, diria Thomas Dolby.

Dizem que, desde Cervantes, entramos na Era da Subjetividade, quando ficamos obsessivos com ideias como identidade, amor romântico, satisfação pessoal no trabalho, missão individual, entre outras. As coisas aceleraram. Hoje em dia, cada vez mais automatizamos e industrializamos a tal subjetividade.

Nunca foi, simultaneamente, tão fácil, tão difícil e tão engraçado falar em primeira pessoa. Pelo jeito, Edson Arantes do Nascimento foi um virtuose não só no futebol, mas um visionário da gramática.

Obrigado, Pelé.


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