Por Eduardo Fernandes.
Olá, como você está?
Acordei pensando em Andrei Rublev, filme do Andrei Tarkovsky sobre o pintor de catedrais ortodoxas na Rússia do século 15.
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Ainda está aí?
Deixe-me provocá-lo um pouco mais.
Se você não assistiu, saiba que:
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É um filme em preto e branco.
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De 1966.
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Tem três horas de duração (na versão Criterion, que é livre da censura do governo soviético).
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Fala sobre pessoas questionando seus valores éticos e religiosos, sobre hipocrisia, competitividade entre amigos, sobre criar (e destruir) arte num momento de ditaduras, violência e extrema pobreza.
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Também é um profundo comentário sobre o que é viver em comunidade. Sobre desenvolver confiança nos seus pares e estar presente quando as coisas vão mal (ou, no caso, quando o sino não funciona).
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Ah… Tem muita neve, um culto pagão e termina com a invasão dos Tártaros na Rússia.
Um filmaço pra relaxar da pandemia.
…
Continua comigo?
Estou brincando. Na verdade, se você aguenta minhas micagens on-line, tenho certeza de que não deve se assustar com experiências cinematográficas intensas. Ainda mais as propostas por Tarkovsky.
Mas por que, afinal, eu me lembrei de Andrei Rublev?
Porque, se você é uma pessoa que acha que tem ideologias, ou que tenta colaborar pra um mundo menos pior, cedo ou tarde vai cair nos mesmos temas que Tarkovsky enfrenta nesse filme (e, na verdade, em toda sua obra).
Um dos "capítulos" do filme, em especial, sempre volta à minha memória.
Em crise, Rublev se perde no meio de uma floresta. Acaba flagrando um ritual pagão, com fogo, cantos e gente nua. Graças à sua aparência de monge, é perseguido e preso por alguns integrantes mais radicais do culto.
Prestes a ser morto, é salvo por uma mulher (esses seres cuja compaixão é disruptiva). Rublev se vê obrigado a experimentar o desejo e, consequentemente, a culpa.
Dá um jeito de fugir. Porém, sua salvadora é tida como traidora e paga a conta. Numa cena dolorida, Rublev passa de barco e avista a mulher, fugindo e sendo punida, num riacho. Com medo de perder a respeitabilidade entre seus colegas monásticos, Rublev faz nada pra ajudá-la.
Num só segundo, percebemos a complexidade que está envolvida em manter convicções.
A quem, afinal, você está defendendo? Sua "credibilidade", sua fama? Seu ego? Ou conceitos abstratos de coerência ideológica? Ou algo ainda mais poderoso: seus hábitos?
Um outro lado desse processo aparece numa velha história Zen.
Dois monges vêem uma mulher sofrendo pra atravessar um pântano. Movido pela compaixão, o mais velho não titubeia e a leva, no colo, pra outra margem. O mais jovem observa, surpreso com a quebra de voto do colega. Horas mais tarde, não se aguenta e pergunta: "por que você carregou aquela mulher?" E recebe a resposta: "Eu a larguei há muito tempo. Por que você ainda a carrega?"
Toda a pessoa que se envolve com ideologias tem que lidar com esses dois cenários: ser consistente e ser flexível. Precisa questionar constantemente quando está mentindo pra si mesmo e quando é rígido pelos motivos errados (como vaidade, manipulação e politicagem).
As três chaves "liberadoras" aqui são:
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Motivação - qual é a intenção por trás das nossas atitudes?
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Honestidade - em especial consigo mesmo.
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Relaxamento - entendemos que a vida é extremamente complexa, cheia de processos interdependentes. E que, de modo geral, não somos capazes de compreende-los claramente. Assim, evitamos carregar um fardo muito pesado de culpa por aí, o que só pioraria as coisas e criaria mais confusão.
Essas são três percepções que se refinam ao longo do tempo. Você passa a vida entendendo como seus hábitos, condicionamentos psicológicos e sociais consomem seu tempo e determinam sua existência.
Dá um certo trabalho. Mas é a jornada a que estamos todos sujeitos, quando tentamos, pelo menos, não piorar o mundo. Por isso, mesmo na Era da Inteligência Artificial, ainda somos muito parecidos com o medieval Andrei Rublev e sua gangue.
O medo de entrar numa jornada talvez seja aquilo que faz muita gente fugir de certas ideologias. Mesmo quando elas são simples, como o veganismo, o uso de software livre ou abandonar as redes sociais. "Quando eu me meter nessas coisas, vou criar ainda mais inconveniências pra mim". Na verdade, deixamos de terceirizá-las (pros chineses, pros animais, pro planeta etc).
Não dá pra começar no mundo ideal. Consistência flexível é a única coisa que seremos capazes de manifestar, provavelmente.
A ideia de jornada é, na verdade, um alívio. Em vez de sofrer as dores Rublevianas da ideologia (ainda que, até certo ponto, elas sejam parte fundamental do processo de refinamento do autoconhecimento), talvez valha seguir um conselho muito mais direto: JUMP! Pula!
(E assim eu faço minha homenagem ao falecido Eddie Van Halen. 😁)
Já que falamos sobre russos… #
Você sabia que, no YouTube, há uma quantidade monstruosa de filmes da Mosfilm, uma das mais importantes produtoras da antiga União Soviética? Dá pra assistir com legendas, via player do YouTube.
Ouvindo #
Podcast Into The Zone. Não, não é sobre o filme Stalker. Nem sobre Russia, ainda que faça parte da rede Pushkin (fundada por Malcolm Gladwell). É sobre muitas coisas. Por exemplo: Quando éramos Cyber, o surgimento do mp3 (e como a Suzanne Vega teve um papel crucial nisso). Mantido pelo escritor Hari Kunzru.
Tecnologia é religião? #
Muita gente gosta de acreditar que não tem religião. Sem perceber, pode ser mais devota, mais carola, que muitos religiosos assumidos. Neste episódio do podcast Monólogo Estéreo, me pergunto como isso funciona. Transcrição aqui.
Billie Elish #
Tenho trauma de infância, então me vejo obrigado a procurar amor e atenção na Internet. Tanto que, dia desses, estava cansado e com vontade de cantar. Em vez de sacar um violãozinho aqui mesmo, me dei o trabalho de achar uma versão em teclado da música "No Time To Die", da Billie Elish, gravar vocais e publicar na Internet. Foi uma operação rápida, lo-fi. Ainda assim, não sou o James Bond. Sempre há tempo de morrer antes de fazer algo útil da vida. 😁
Alguém aí tem uma Focusrite sobrando? #
Uso uma placa USB e um microfone emprestados pra fazer os podcasts. Cedo ou tarde, vou ter que devolver. Enfim, só pra informar ao Universo, pretendo comprar uma Scarlet Solo, da Focusrite. Ouviu, Universo?
Sei que a Behringer tem coisas mais baratas, mas não acho que valha o custo / benefício ao longo do tempo.
Assim, se alguém tiver uma placa dessas sobrando e estiver num processo Marie Kondo, estou aceitando doações. Querendo colaborar com a compra, é só escolher uma forma de apoiar aí embaixo. Gratidón.
É isso por hoje. Obrigado por ler e nos vemos por aí.
Abraço,
Eduf
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