Skip to main content
eduf.me

Não é irônico?

Por Eduardo Fernandes.

Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.

Alanis Morissette

Posso dizer que tenho pelo menos uma coisa em comum com David Foster Wallace: a apreciação por Alanis Morissette (ah, vai dizer que você não assistiu ao filme sobre ele). Pois a cantora canadense acaba de realizar o sonho do documentário próprio. Chama-se Jagged e foi dirigido por Alison Klayman para a HBO.

Quem é que, nos anos 90, não levantou pelo menos uma sobrancelha ao ouvir a música que colocou Alanis no mapa, “You Outta Know”? Era uma faixa pop, bastante comum até. Porém, a letra e a interpretação vocal eram raivosas. Alanis, então com apenas 19 anos, se vingava (ornamentalmente) de um pé-na-bunda.

Não que o cenário cultural da época fosse bucólico: a bolha grunge estava repleta de temas muito mais pesados e de violência, falava abertamente sobre junkies, perdedores e suicidas. A MTV exibia vinhetas de Bill Plympton, Garoto Enxaqueca e Liquid Television, produtos que aprofundavam ainda mais o escárnio de personagens como Max Headroom (1985 - 1988).

Porém, Alanis era branca, bonita, articulada, um tanto frágil e jovem. Assim, causou um impacto ‘suave’, por meio de um hit, cuja letra perguntava ao ex-namorado se a substituta também lhe fazia boquetes no cinema. E acabou por despertar atenção do mainstream para toda uma linhagem de mulheres assertivas e confessionais, que já se movimentavam pelo mundo pop há décadas.

Fosse apenas pela bravata, Alanis não teria ido tão longe. A cantora tinha (e tem) um enorme carisma. Usando roupas bastante casuais, não escondendo seu lado depressivo e sempre carregando uma câmera portátil, ela adiantou o que seriam os criadores de conteúdo contemporâneos: gente com quem o público pode se identificar.

Alanis abriu caminho na cultura pop para uma categoria mais branda de mulheres empoderadas. Não era uma figura mítica como Madonna (que, aliás foi “investidora” de Alanis desde os primeiros shows) ou Ella Fitzgerald. Nem tão voltada para nichos, como Joan Jett, Janis Joplin, Kim Gordon, entre tantas outras. Alanis era acessível. Tanto que é amada por artistas como Beyoncé e Taylor Swift.

Jagged mostra cenas de todas as fases de Alanis. Dos abusos sofridos em sua primeira fase de sucesso, no Canadá, durante a adolescência, até o disco “Jagged Little Pill”, que a levou a tocar em estádios lotados em vários países. Também intercala entrevistas recentes da cantora, agora com filhos pequenos, morando numa casa suburbana de classe-média, cercada de livros.

No fundo, ela acabou se rendendo ao estereótipo mãe / dona de casa. Mas e daí? Parece feliz. Ainda que exale uma nostalgia de quem acabou de acordar de um sonho surreal e grandioso. E uma coisa é evidente: Alanis não perdeu seu carisma. Eu mesmo poderia gastar horas ouvindo-a contar histórias.

Alguma coisa em Alanis comunica uma presença muito (que palavras usar?) sincera e aprazível. Tanto que, em certo ponto do filme, ela pensa na sua antiga raiva na juventude e declara: “no meio daquilo, também existia compaixão, suavidade”.

Ainda que seja bem medíocre, Jagged é um retrato interessante de certa paisagem cultural dos anos 90 — esse mundo que, hoje, parece tão estranho. E tão simples.