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Não entendi. Que bom

Por Eduardo Fernandes.

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Transcrição do episódio #

O ano está no fim e é hora da mídia seguir aqueles velhos costumes: fazer retrospectivas de 2021 e apontar tendências para 2022. Quem sou eu para fazer diferente. Mas, como de costume, vou seguir um caminho bem torto. Vou falar sobre um filme recente que teve bastante sucesso de crítica. E, ao mesmo tempo, sobre um conceito tecnológico muito espinhoso, que levou muita pancada neste ano.

O filme é o The French Dispatch, do premiadíssimo Wes Anderson, diretor de Os Excêntricos Tenenbaums, entre outros.

E o conceito é o de Organizações Autônomas Descentralizadas, as DAOs, que, basicamente, são uma forma de organização social baseada na tecnologia Blockchain, portanto, em operações financeiras via criptomoedas.

E o que essas duas coisas absolutamente diferentes poderiam ter em comum? Ahá, o entusiasmo do hermetismo.

Ainda não estou ajudando, certo? Continue me acompanhando.

Wes Anderson é conhecido por produzir um cinema hermético, mas muito simpático. Para uma melhor fruição de The French Dispatch, o público precisaria ser altamente informado não só sobre cinema, como também sobre história.

O filme é uma espécie de brincadeira em torno de uma revista de jornalismo literário, estilo The New Yorker, só que transportada para o interior da França. Acompanhamos algumas reportagens, divididas pelas seções da revista.

A primeira impressão que temos do filme, é de um tom um tanto leve, de algo que não se leva muito à sério, mas que depende de muitas referências para realmente funcionar. Um tanto como Quentin Tarantino faz, só que de um ponto de vista europeu, muito mais sofisticado.

Anderson não faz filmes imersivos, cheios de ritmos dinâmicos e dramáticos. De modo geral, suas obras têm uma cadência linear, tipo Charleston, que você acompanharia estalando os dedos.

Já a escolha de atores, os cenários, o uso da nostalgia, o virtuosismo da montagem e da direção de arte escondem que a narrativa é um tanto… excludente.

Talvez seja a minha própria ignorância, mas sinto que estou vendo algo genial, só que meio sem alma. E me vejo na obrigação de gostar da obra, mesmo que só para me considerar um dos escolhidos, dos admiradores de Anderson. Ao mesmo tempo, tenho que confessar que me sinto um tanto desconectado. Até mesmo nas piadas que entendo.

Um processo parecido acontece com as DAOs, Organizações Autônomas Descentralizadas. Se você tem tendências anarquistas, se está descontente sobre como o Estado gerencia contratos, se não aguenta mais lidar com burocracias, tende a se apaixonar pelo hype do Blockchain e das DAOs. Tudo funciona num nível meio emocional.

Até que você começa a ler sobre o assunto e percebe que a linguagem do universo crypto é, talvez, ainda mais hermética do que a do universo jurídico tradicional.

Pior: para conhecer melhor essas tecnologias, até onde eu sei, você, necessariamente precisa ter uma carteira de criptomoedas.

Ou seja: as transações financeiras são a base dessa nova formação política. Porém, o hype, o discurso que atrai atenção para as DAOs, ainda é o da publicidade e até do velho e bom ativismo.

Para continuar na nossa metáfora musical, o ritmo das DAOs seria o da urgência: agitado, estilo música de academia de ginástica. E acaba que, se você é uma pessoa genericamente interessada em política e em tecnologia, pode também ser capturado pelo hype, por precisar sentir-se moderno, numa espécie de crypto FOMO (Fear of Missing Out).

Ou, pelo contrário, pode sentir rejeição, fazendo críticas descuidadas e arrogantes, no estilo, “todas essas coisas são besteira, non-sense”, sem entender exatamente do que você está falando. E, como se sabe, a História está cheia de exemplos de ideias non-sense que acabam nos governando.

De novo, debaixo de todo o discurso, favorável ou não, está o conhecido substrato emocional evocado pela falta de conhecimento, pelo hermetismo.

O hermetismo é um instrumento incrível de engajamento social. Em especial, porque ele produz diferenciação e quebra com a noção de igualdade: “eu sou melhor que você, entendi isso antes, entendi o que há por trás, estou entre os escolhidos”.

Ainda assim, como vimos, o hermetismo sozinho é ineficiente. Ele sempre precisa de um outro discurso, mais emocional e direto para apoiá-lo, assim como precisamos de músculos sinergistas e antagonistas.

Tanto Wes Anderson quanto as DAOs se beneficiam não só do hermetismo, mas também do hype em torno dele, positivo ou negativo.

Quando uma pessoa assiste a The French Dispatch, tmabém está inserida num vórtex publicitário que diz o quão genial o filme é, além da fama de Bill Murray e de Léa Seydoux etc. Se fosse um filme com atores completamente desconhecidos, se não tivéssemos ouvido falar que ele é inspirado na sofisticada revista The New Yorker, talvez não tivéssemos nos conectado ao filme.

De forma semelhante, quando ouvimos falar sobre DAOs, imediatamente nos conectamos a áreas mais primais do nosso cérebro. Além da rejeição à política institucional, que ficou ainda mais forte depois do COVID, e do discurso publicitário que valoriza a inovação e a disrupção. Até mesmo críticos se sentem compelidos a jogar tudo no lixo, sem um exame mais minucioso.

Então, se eu fosse fazer uma retrospectiva de 2021, se eu tivesse que escolher qual foi o fenômeno do ano, certamente diria que foi o tribalismo. Como esse nosso desespero de pertencer a algo, de estar vinculado a alguma bolha e tentar furar as outras, ficou muito evidente nesse ano. E também como o hermetismo foi um instrumento indispensável para a política e para a cultura.

Claro, se eu tivesse que apontar uma tendência para 2022, diria que é exatamente a mesma. Essas coisas não vão sumir tão cedo.

Arriscando eu mesmo estar sendo hermético aqui, é isso que eu tenho para dizer no último episódio deste ano. De qualquer forma, boa festas e nos falamos em 2022, se tudo der certo.