Por Eduardo Fernandes.
Transcrição do episódio #
Como muita gente, no final do ano, fui pego por mais um meme da Netflix, o Don’t Look Up, aquele filme em que um casal de cientistas tenta inutilmente alertar a humanidade para a aproximação de um cometa destruidor.
Para mim, o filme pareceu uma espécie de atualização do clássico Idiocracia, de 2006. Assim como em Don’t Look Up, Idiocracia, também tratava de problemas ambientais. Você deve se lembrar de que a sociedade futurística desse filme passava fome porque seus líderes acreditavam que seria mais inteligente irrigar colheitas com Gatorade em vez de água. Já em Don’t Look Up o cometa desgovernado serve como metáfora para a urgência do aquecimento global.
Note que, nas duas obras, o problema ambiental é visto por um ângulo bem específico: o de sociedades imersas numa cultura de entretenimento, consumo e conveniência. O mundo filtrado e ressignificado pela mídia, mas em estágios diferentes de desenvolvimento.
No Idiocracia, a ênfase é na lógica televisiva. Em Don’t Look Up, o foco muda para as redes sociais. Ainda assim, a matrix de alienação e negacionismo estrutural é praticamente a mesma, que segue desde os primórdios do rádio. Nós ainda usamos as mesmas técnicas de manipulação que incomodavam Louis Armstrong nos anos 1920. Cada mídia subsequente acelerou o mesmo processo e o deixou cada vez mais complexo.
Mesmo muitos criadores de conteúdo, que não são (abertamente) empregados por corporações, aprenderam a funcionar dentro desse ambiente midiático, a precisar dele e a crescer nele.
É por isso que, em Don’t Look Up, usando celulares, as pessoas ficaram muito parecidas com os apresentadores de TV, preocupados com estatísticas de visibilidade, sensacionalismo, piadas escapistas, ou formular opiniões bombásticas e simplistas sobre todos os assuntos.
E aí chegamos ao ponto que mais me intrigou em Don’t Look Up: o papel dos cientistas.
O filme coloca um casal de cientistas como heróis ignorados pelo negacionismo estrutural. Hmm. Funciona bem, quando o problema é, de certa forma, simplório: um gigantesco cometa surgindo. Mas, o impacto não é o mesmo em assuntos como o aquecimento global, cheio de nuanças e difuso.
Nesse caso, seria preciso nos lembrar de que os próprios cientistas nos ajudaram a chegar na nossa atual situação. Também existem cientistas negacionistas e alienados. As ciências não são um conhecimento absolutamente puro, isolado da sociedade. Não são feitas por anjos, livres de servir a interesses corporativos, consciente ou inconscientemente.
As ciências são feitas em corporações e universidades. São financiadas pelo Estado e/ou por corporações. Elas, ao mesmo tempo, fundamentam e são fundamentadas pelo sistema capitalista, em todas suas transformações, ao longo do tempo. Por isso, me incomodou uma certa romantização dos cientistas em Don’t Look Up, coisa que o Idiocracia não tem — que eu me lembre.
Você pode argumentar que, na verdade, a romantização vai para um certo tipo de cientistas: os indie, aqueles pesquisadores nerds, de laboratório. Os cientistas solucionistas das corporações de tecnologia são, indiretamente, criticados em Don’t Look Up.
De qualquer forma, é um tema para ficar de olho: é muito diferente encontrar um cientista como, por exemplo, Sidarta Ribeiro, que tem uma visão politizada, algum respeito por conhecimentos ancestrais e uma longa história de ativismo, e cientistas apenas técnicos, que se escondem atrás da suposta neutralidade do conhecimento.
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