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Negócios inacabados

Negócios inacabados

Por Eduardo Fernandes.

Bill Gates steampunk, via Lexica, a desenhista de IA.

Recentemente, fui convocado para organizar e limpar um galpão de ferramentas. O local é do tamanho de meio campo de futebol, com uns três ou quatro metros de altura, repleto de furadeiras, parafusos, motosserras, canos, cabos e peças que pareciam restos de algum foguete da Nasa. O espaço não recebia uma faxina há 10 anos.

Passado o espanto inicial com a complexidade da tarefa, baixou em mim a Marie Kondo God Mode. Eu queria entrar em cada canto, etiquetar cada gaveta, tirar todas as manchas do chão, reagrupar todas as partículas do Big Bang.

E assim segui, até que, muitas caixas depois, chegamos à hora do almoço. Merecidamente, meus companheiros de trabalho abandonaram seus postos. Mas eu não conseguia: “Só mais uma prateleira! Tem mais um prego solto ali”. Praticamente tive que ser sequestrado para aceitar fazer uma pausa.

Foi aí que percebi porque nunca consegui ser um romancista. Claro, tem a falta de talento. Ouvi dizer que isso influencia. Mas, essencialmente, meu problema é ter baixa tolerância para trabalhos inacabados, que demandam um longo ciclo de desenvolvimento e maturação. Imagine levar um ano para terminar um só capítulo. Muita angústia. É mais fácil escrever um artigo e ter aquela sensação de missão cumprida.

Esse é um hábito limitante e ansioso que tento controlar. Até porque, em geral, parece que a vida é um processo sempre aberto, em eterna reciclagem, fractalizando o tempo todo para todos os lados, para o futuro e para o passado. Quem se apega muito a começo, meio, fim e narrativa em três atos, está na fila para a úlcera nervosa.

Mas por que estou falando sobre isso mesmo?

Ah, sim. Por causa das notícias sobre Inteligência Artificial.

Essa semana foi um caos. Desviar desse assunto é mais ou menos como Neo, do filme Matrix, se contorcendo para evitar ser baleado. Nova versão do ChatGPT, novo MidJourney, Google Bard, Meta LLaMA, Microsoft atualizando o Bing, NVidia entrando em campo, Bill Gates bancando o profeta atrasado, declarando que entramos numa nova era. Essas coisas.

Sou obrigado a concordar que essa semana entrou para a história. Mas por outro motivo: é possível que nunca o ritmo de anúncio, adoção e superação de tecnologias foi tão acelerado. Até mesmo para os padrões da Internet.

O FOMO é tamanho que só falta acampar na porta da OpenAI para evitar perder o último pré-alfa-teste-privado-hypado de alguma ferramenta inacabada. Saudades da época em que nos espantávamos vendo pessoas em filas para comprar iPhones. Hoje há quem acumule vagas em listas de espera. Já existem cambistas para essas coisas?

O que eu queria dizer é o seguinte: a história recente da tecnologia está mais para tweet do que para romance. A maturidade de um projeto tem que acontecer em uma semana. E, de preferência, em público.

É a privatização da Guerra Fria. Lance o produto logo, antes que outra empresa o faça. Livre-se dessa comissão de ética que está atravancando o processo. Isso aqui é realpolitik, não me venha com chorumelas. Aiô, Silver!

Novamente, não dá para esperar pelos três atos. Vamos trocar de filme no meio da sessão. Mudar de língua no meio da palestra. Adote essa ferramenta, antes que o Putin ou o Biden, ou algum asiático jogue a bomba. Adrenalina. Milissegundo agora é longo prazo.

Da minha parte, o que fazer? Estou aprendendo a valorizar mais o aspecto inacabado dos processos. Tanto os propositais — como os fins não revelados de alguns livros de Haruki Murakami, entre outros — quanto os projetos abandonados. Ou cancelados pela vida e morte.

Manter a mente no presente dá um certo trabalho. Imagine quando o presente parece uma esteira de academia desgovernada. Hoje em dia, visão de longo alcance parece algo tão necessário quanto praticamente impossível. Mas a gente se vira.


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