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Nunca mais verei esse filme

Por Eduardo Fernandes.

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Às vezes, parece que somos perseguidos por um filme, música ou livro. Aparentemente do nada, aquilo surge nas suas timelines, nas conversas, nos sonhos, nas memórias, no meio de um orgasmo. Quase como se “o universo quisesse” que você desse atenção pra uma determinada obra.

Estou passando por isso agora mesmo. Sou impiedosamente perseguido por um filme que assisti em 1999. Na época, jurei nunca mais revê-lo. Nem com reza brava. Nem pra salvar o planeta de uma invasão da IA.

E não por detestar o filme. Pelo contrário: é um dos meus favoritos. Quando o vi, chorei do começo ao fim. Até os créditos subindo na tela me causavam palpitações. Ao terminar, precisei ir ao pronto socorro, desidratado.

Veja bem, como bom vulcano, tenho um coração de pedra. Sério. Não entendo emoções. Não choro nem em enterro. Minhas expressões faciais são mais restritas do que a desse pessoal que exagera no Botox. Mas esse filme… esse me causou um dilúvio ocular. Eu poderia instalar uma hidrelétrica nas pálpebras.

Não estou exagerando. O filme junta alguns dos meus pontos fracos mais kriptoníticos: road movie, gente marginalizada, peregrinos buscadores de significado e velhinhos de áreas rurais.

Pior: é um filme de David Lynch. Só que uma espécie de anomalia no currículo do cineasta. Afinal, tem uma história bastante linear e imediatamente compreensível. Não há torturas, gente gritando, coelhos ou monstros surgindo na esquina.

Refiro-me a “The Straight Story”. O título em português, “Uma História Real”, dá a letra de que o filme é parte da biografia de Alvin Straight, um homem de cerca de 80 anos que resolve viajar de Iowa pra Wisconsin. Num cortador de grama. Foram 400 km, a 5 por hora.

Straight estava doente, com os dias contados. Mas, antes de morrer, queria se reconciliar com o irmão, com quem não falava havia 10 anos. Contrariando família e amigos, embarca nessa peregrinação (potencialmente perigosa) pelas estradas norte-americanas, numa espécie de purificação.

Lynch passou a carreira mostrando como os pensamentos e emoções são não-lineares, temporários e seguem lógicas próprias. Em “Uma História Real”, ele investiga o outro lado do processo de pensar. Mostra quanta energia e tempo estamos dispostos a gastar pra seguir uma única narrativa. Uma ideia surge na mente, você se apaixona por ela (ao rejeitá-la ou desenvolvê-la) e embarca numa “viagem” que pode durar uma vida inteira.

O que mais me pegou no filme foi seu contexto emocional, a delicadeza da narrativa. Por onde quer que passe, Alvin encontra compaixão e empatia. São contatos humanos profundos. Aquela camaradagem que só quem já esteve perdido na vida, com uma mochila nas costas, conhece. Amigos de estrada.

É por isso que decidi não ver o filme de novo. Não quero estragar aquela primeira impressão. Endurecido como estou pelo ambiente de mídia pós 2012, é certo que vou implicar com o tom meio autoajuda que surge aqui e ali na obra.

Mas, pra variar, meu assunto aqui era outro.

A fim de se purificar e de sentir-se digno de encontrar o irmão, Alvin Straight se apoia numa tecnologia antiga e inadequada pra viagem: um cortador de grama. Não era um SUV, um motor-home ou, simplesmente, um busão. A ideia é enxergar o que há além do vício na conveniência e conforto.

Straight usa as limitações do equipamento como uma feature, um meio de atingir sua liberdade. Mais ou menos como alguns GenZeners, que estão adotando “dumbphones”, celulares das antigas, e rejeitando algumas tecnologias.

Também é uma espécie de purificação desse universo cultural que nós estamos desenvolvendo já há uma década: o mundo do bate-boca, da irritação constante, de algum artista ou jornalista querendo nos enraivecer com algo, arrancar uma reação primal, atiçar a ansiedade e o desespero.

Ao se apoiar em tecnologias inadequadas e obsoletas, talvez Alvin Straight e os “Dumbphonesters” acabem saindo pra rua, se conectando com histórias e entrando numa outra velocidade cognitiva.

Colocando o pé na estrada, se comunicando sem a mediação de empresas, podem acabar descobrindo esses fenômenos espantosos e surpreendentes, que insistem em sobreviver: empatia e compaixão. E então, você percebe que, a menos que você realmente se esforce, é impossível manter o cinismo 100% do tempo.

Mas, enfim… Será que eu assisto ao filme de novo?