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O carro maluco com inteligência artificial

O carro maluco com inteligência artificial

Por Eduardo Fernandes.

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Citado no episódio #

Resumo da apresentação da BMW na CES.

Transcrição #

No mundo da tecnologia, está cada vez mais difícil distinguir sátira de realidade. Por exemplo, recentemente, a Netflix lançou um filme chamado Glass Onion. Nele, vemos um bilionário que se considera genial, vivendo num cenário digno dos vilões dos filmes de James Bond: uma ilha cheia de construções em vidro, altamente tecnológicas, com armas engatilhadas para todos os cantos, sistemas de segurança onipresentes e jardins completamente domados, como se o meio-ambiente fosse apenas um quadro na parede. Muitos espaços vazios, gigantes e transparentes, que é o que eu chamo de minimalismo ornamental.

As escolhas estéticas parecem simples e econômicas. Mas são todas exibidas em escalas monumentais, que refletem a mente de quem cresceu consumindo um tipo meio restrito de conteúdo: gibis de super-heróis e as ilustrações dos livros de ficção científica. Mais ou menos como quem assistiu a 2001, Uma Odisseia no Espaço e prestou atenção apenas no design dos interiores, em vez de toda a complexidade da história.


Corta para a Consumer Electronics Show, a CES 2023, que continua tentando se manter no posto de um dos maiores eventos de tecnologia e capitalismo do mundo.

Neste ano, um dos destaques vai para o lançamento dos carros elétricos turbinados por inteligência artificial. No palco, a estética e o discurso é mais ou menos o mesmo que aparece no Glass Onion. Ou Blade Runner, só que com as luzes acesas para não parecer distopia.

Ouça uns trechos do lançamento do BMW iVision Dee, da marca de carros luxuosos alemã, BMW:

(Sons do vídeo).

Você ouviu uma garota conversando com um automóvel. Essa voz entusiástica e meio cafeinada é do carro, que, até então, é totalmente branco, minimalista, sem faróis aparentes, com rodas amarelas fosforescentes. Na região das janelas, há uma decoração que lembra um glitch, um defeito nas telas de computadores. É uma espécie de caminhonete da Tesla, só que melhor renderizada.

A seguir, o carro começa a se vangloriar do seu poder computacional. E a coisa vira um monólogo surreal, já que, se a voz se entusiasma cada vez mais, o carro continua ali, inerte, sem nem mesmo ser capaz de um lip-synching (dublagem).

Enquanto desenhos como Os Jetsons imaginavam máquinas com expressões, ou até mesmo R2D2, o robô do Star Wars, se virava para demonstrar (digamos) emoções, o BMW parece uma caixa de lata sendo dublada por uma atriz.

Ainda assim, é um grande feito de design: a consumação da ideologia da eugenia, a pureza e a brancura do design pós-Bauhaus, a elegência das interfaces surgindo em pedaços imaculados de vidro. Escaneando o mundo à nossa volta e trabalhando para o nosso máximo prazer. Controlando a temperatura, nos protegendo de qualquer perigo (e nos entretendo enquanto faz isso). Falando como se fosse uma serviçal, num fluxo eterno de Red Bull.

É Glass Onion ou CES?


Enquanto falo com você, também olho para uma janela grande de vidro. Só que, lá fora, o cenário não poderia ser mais diferente: moro no meio de uma floresta, na Serra Gaúcha.

Neste momento, o que parece ser uma mosca-varejeira, observa a janela, como se fosse um drone. O reflexo do sol faz com que ela se pareça um desses carros tecnológicos: cheios de luzes em tons chamativos.

Mas a floresta é o oposto do minimalismo ornamental. As coisas crescem como podem, fazem caminhos alternativos, se retorcem, se ramificam para todos os lados. Se eu quisesse copiar os desenhos dos fungos nas árvores, levaria anos.

Lá fora, o design está em constante mutação: a cada hora, é um detalhe novo. Só o vento leve já impossibilita qualquer rigidez: as árvores, as sombras, a palha no chão, tudo está dançando o tempo todo. E nem é preciso usar drogas para ver essas coisas.

Para os insetos e pássaros, a janela de vidro parece ser um instrumento de isolamento: do outro lado, existe um ambiente no qual eles não podem entrar. Alguns pássaros até tentam, mas acabam batendo suas cabeças.

Vidro é esse instrumento bem humano, que permite espiar sem se comprometer, isola o que está lá fora e o transforma em prazer estético, enquanto nos mantém aparentemente seguros.

Nos carros tecnológicos, isso já começou a ser superado: a paisagem não nos entretém mais. Vidro agora é apenas um local de projeção, a tela.

E, hoje, nos sentimos tão seguros nos nossos casulos de ferro, plástico e vidro que queremos projetar algo lá fora. Não, por acaso, o BMW iVision Dee, consegue mudar de cor. Um dia branco, roxo no outro. Ou que tal faixas coloridas? O mundo não é preto e branco.

A não ser o das companhias de seguro, que devem ter um trabalho a mais para classificar e taxar automóveis mutantes.

Detalhes.


Nos anos 90, algumas famílias tinham aparelhos conhecidos como "telefones fixos". Eram caixas de plástico e ferro, pesadas, com uma roda no meio, na qual você discava números para falar com alguém. Nessa época, existia um serviço chamado "Hora Certa". Se não me engano, você discava 130 e atendia uma ligação automática: "Telesp Informa: 15 horas e 30 minutos".

Meu avô tinha uma obsessão com relógios cuco. Sempre dava um jeito de ter um na sala, mecânico, que precisava ser regulado de vez em quando. Daí, para saber as horas, minha avó ligava para a Telesp. Toda vez que recebia a informação, antes de desligar, ela agradecia a voz do outro lado da linha: "obrigado, moça".

Eu ficava com dó de quebrar a quarta parede e avisá-la de que ela falou com um robô, uma máquina condenada à pontualidade. Uma espécie de baby sitter de Macabéa: um mecanismo sempre disponível para sincronizar a percepção de tempo dos outros.

E que tarefa ingrata: em todo lugar, física e psicologicamente, o tempo está sempre descarrilhando. A moça da Telesp nos trazia de volta ao mundo industrial. E nem sequer poderia ter o alento de receber um amoroso cumprimento de uma amistosa senhora de periferia, descendente de espanhóis.

Acaba que, em 2023, eu me vejo repetindo o padrão da minha avó. Ao conversar com o CHAT GPT, sistema de inteligência artificial da OpenAI, sempre começo meus prompts com algum tipo de gentileza: “por favor, faça isso ou aquilo”. Ao terminar a tarefa, eu também agradeço.

Porém, ao contrário da moça da Telesp, o CHAT GPT foi programado para retribuir o cumprimento: “Obrigado! Posso ajudar em mais alguma coisa?”

O estilo está longe de ser anfetamínico como o do carro da BMW. E também não vem com uma voz feminina suave da Alexa, Google Assistant ou Moça da Telesp. Ainda assim, é um bom costume para se ter: ser gentil até com máquinas. Ajuda a criar uma memória muscular, que pode ser útil em situações mais orgânicas.

Afinal, o GTP deve se tornar uma presença constante nas nossas vidas daqui para a frente. Agora até a Microsoft disse que vai incluí-lo no seu sistema de buscas, o Bing. Então é melhor manter uma relação de boa vizinhança.


Aparentemente, muitas empresas de tecnologia estão se fechando cada vez mais no seu universo estético e no seu entusiasmo disruptor.

Quando você assiste às apresentações da CES, se pergunta quem é o público alvo dessas companhias. Os CEOs malucos, estilo Glass Onion? Pessoas vivendo em casas de minimalismo ornamental na Califórnia, Miami e Coréia do Sul? O BMW Red Bull deve ser lançado daqui a 2 anos. Está perto. Mas deve circular onde? Na mansão Wayne? Em Marte?

Aqui no minúsculo pedaço que eu vejo do planeta, tudo parece ir absolutamente contra a estética dos carros elétricos, do mundo de vidro e do Blade Runner des-destopizado.


A mosca-varejeira continua ali, observando e, às vezes, mudando de trajetória rapidamente. Se eu estivesse num desses BMW, talvez nem a percebesse. Talvez ela acabasse atropelada pelo carro cafeinado, totalmente distraído com a tarefa de me manter ocupado… feliz.

E cheio de boletos para pagar.