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O estranhamento do Dr. Estranho

Por Eduardo Fernandes.

Nessa semana, eu fui convidado a assistir ao filme Dr. Estranho no Multiverso da Loucura. No cinema. E em 3D.

Fazia um bom tempo que eu não via um blockbuster num multiplex. E, durante toda a experiência, eu senti um estranho... estranhamento.

Explico: no começo do século 20, o dramaturgo e ativista alemão, Bertolt Brecht, inventou um conceito conhecido como estranhamento.

Brecht dizia que roteiro e encenação precisavam deixar claro para o espectador que ele estava diante de uma ilusão. O espetáculo é uma obra de arte, não a realidade.

O objetivo era se opor ao teatro burguês, que tentava mergulhar o espectador completamente na história e fazê-lo esquecer de si mesmo.

E daí que os filmes da Marvel estão cada vez mais produzindo um estranhamento.

Claro, não aquele proposto por Brecht, que era um distanciamento crítico, que visava entender como a sociedade funciona.

No caso da Marvel, existe um sentimento de que o filme não se leva à sério, que é uma espécie de entretenimento que celebra a própria indústria do entretenimento norte-americana.

Por exemplo, nos filmes épicos dos primórdios de Hollywood, toda a produção fazia o possível para nos fazer acreditar naquelas histórias. Mesmo nos clássicos da ficção: a história de 2001, Uma Odisseia no Espaço, era bastante surreal e maluca, ainda assim, existia uma verossimilhança ali. Era possível se compadecer até do computador paranoico, Hal 9000.

No caso do Dr. Estranho, parece que há sucessões intermináveis de interrupções. A trilha sonora cita músicas do passado. O diretor, Sam Raimi, a toda hora celebra os clichês que ele mesmo inventou quando era diretor de filmes de terror. No meio de uma cena dramática, surge uma piada aleatória ou referência a um personagem de algum outro filme. E por aí vai.

Na verdade, essas coisas não causam estranhamento. Causam interrupção. E isso é bem a cara da nossa época.

Quando você está começando a se importar com os personagens, surge uma notificação: "oi, eu sou um fan-service", "ei, lembra daquele outro filme?", "psiu, quem está dirigindo aqui é o Sam Raimi", "ei, o roteirista é o cara do Rick & Morty, ele já fez essa piada antes".

O celular não precisa tocar, as pessoas não precisam falar na plateia. O próprio filme se encarrega de nos interromper o tempo todo.

Será que essa é uma "tiktokicização" do cinema? Quer dizer, o filme não dura 2 horas, mas é uma sucessão de piscadelas para o público?

Ou apenas oportunidades para exegese? Encadeamento de situações para serem, depois, explicadas, debatidas e teorizadas por YouTubers e influencers?

Então, que tipo de estranhamento o Dr. Estranho proporciona?

Sim, somos levados a perceber que assistimos a uma obra de entretenimento. Mas a diversão agora é ficar completamente imerso na atividade paralela de decodificar o filme?

Tiramos a identificação e a ilusão de dentro da sala. Depois a espalhamos para fora dela (em especial na Internet).

Uma pena que Bertolt Brecht não esteja mais vivo para nos explicar essas coisas. Mas nunca se pode descartar que ele vá acabar aparecendo em algum filme de zumbi.


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