Skip to main content
eduf.me

O médium é a mensagem

Por Eduardo Fernandes.

Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.

A Era das Bolhas. Esse é o nome que Eric Hobsbawm daria ao seu livro sobre os últimos 20 anos. Mencionei que o historiador egípcio faleceu em 2012? E que não chegou a escrever o tal texto? Detalhes.

Meu ectoplásmico Hobsbawm ditou algo assim:

“Nos anos 2000, ocorreu a mais rápida expansão da produção e consumo de conhecimento já vista nesse planeta. Num certo sentido, isso democratizou a atividade intelectual. Mas, paralelamente, criou um dos maiores distúrbios cognitivos já vistos.”

Hobsbawm continua, num tom espectral:

“Não me refiro aos problemas de moderação. Nem ao retorno da extrema-direita. Nem à pós-verdade. Ou ao custo ambiental de publicar tanta informação. Não basta pensar na materialidade da internet, no gasto de energia, na destruição do ambiente em busca de minérios para componentes usados em data centers cada vez maiores.” “A parte mais importante dos anos 2000 foi a criação de um vasto suprimento de mão de obra informal, praticamente sem remuneração e direitos trabalhistas, o lumpenproletariado digital. Também conhecido como Criadores.”

Hmm. Acho que já ouvi falar deles.

“Essa alcunha, ‘criador’, revela a conotação religiosa da atividade. Assim como ‘seguidor’ e ‘membro’. Não por acaso, muitos autores usam um tom messiânico, profético e conspiratório nas suas produções. Aliás, se o Autor foi declarado morto no século 20, deu origem a outra coisa até mais clara: o Criador, que é uma entidade essencialmente mesclada com plataformas, que mais ou menos funciona dentro dos limites de formatação impostos por elas. É passível de ser medido via estatísticas e está numa missão muito mais restrita do que os autores do passado: crescer. Como seriam as obras de Proust ou Poe se eles tivessem um mecanismo tão íntimo e onipresente de auto-regulação? Até mesmo escritores que ganhavam por página e dependiam de popularidade, como Mark Twain, o que teriam escrito agora? Enfim, os mecanismos de incentivo e compensação psicológicos das plataformas ajudam a manter hordas de pessoas trabalhando exaustivamente e tentando se adaptar a regras de formato e periodicidade. É o chicote atrelado ao desejo, dominatrix corporativa.”

Aqui, eu faria muitas perguntas. Mas se não tenho traquejo com vivos, imagine com mortos. Então, deixei que Hobsbawm seguisse sua análise:

“O lumpenproletariado digital foi lucrativo de pelo menos 5 maneiras simultâneas:

  1. Em frente das telas, no front-end, dispunha-se a compartilhar (e fabricar) sua intimidade, seguindo as regras de 'melhores práticas'. Era uma máquina de publicar e de desejar publicar.
  2. No back-end, por trás, forneciam meta-dados para governos e empresas de marketing. Servia às máquinas de identificar padrões.
  3. Seus integrantes consumiam o conteúdo uns dos outros. Eliminaram a distinção entre produtor e consumidor.
  4. Também serviam como instrumento de comparação para manter outros trabalhando. Eram instrumentos de controle.
  5. Compravam os produtos anunciados nos próprios aplicativos que utilizavam. Eram praticantes de consumo fractal e onipresente.

Sociólogos da época chamaram esse fenômeno de Plataformização do Sujeito.”

Ok, ok.

Mas o que mantinha os trabalhadores funcionando, mesmo sob pressão? O próprio estresse. Psicografa Hobsbawm:

“Os Criadores operavam num estado constante de angústia mental, comparando-se uns com os outros, tentando atingir níveis de excelência definidos pelas plataformas, mesmo sem entender direito como estas funcionavam. Não sabiam contextualizar estatísticas: mediam-se como se todos estivessem seguindo as mesmas regras, como se não houvesse seguidores pagos, robôs e acordos monetários com as plataformas. Como se não existissem mecanismos de impulsionamento e de isolamento de autores, como os relevados nos Twitter Files. Assim, os criadores desenvolviam sentimento de culpa, vergonha (de falhar) e o desejo de se ‘aprimorar’ rapidamente. Tudo isso enquanto cultuavam os próprios donos das plataformas. Uma síndrome de Estocolmo de padrões monumentais.”

Mas, aos poucos, esse sistema foi se mostrando insustentável. Era tanto conteúdo circulando (e tanta necessidade de produzir mais) que foi necessário recrutar máquinas para dar conta do trabalho.

Entra a Inteligência Artificial:

“Aplicativos surgiram não só para ler, resumir e reagir ao conteúdo 'excedente'. Mas também para criá-lo com mais eficiência — mais rapidamente, mais adaptado às tais 'melhores práticas' de cada plataforma.”

E os humanos, foram fazer o quê?

Prompts. Subiram um nível na escala dos metadados. ‘Criar’ se tornou o seguinte: disparar processos de combinação de informação nos computadores.”

Então, o consumo de conteúdo também foi sendo delegado aos próprios computadores. Ou seja, a digitalidade virou, como diria Raul Seixas, o começo, o fim e o meio.

E, claro, como os modelos de inteligência artificial gastam muita energia para funcionar adequadamente, adicionamos mais questões ambientais para resolver.

O fantasma imaginário de Hobsbawm acredita que, nesse ponto, a ideia de democratização da informação também mudou. Agora é democracia filtrada, em níveis cada vez mais abstratos. Um aumento significativo na quantidade de burocracias e micropoderes com os quais temos que lidar cotidianamente.

Mais: com tanta informação (e metainformação) circulando, em tese, apenas aqueles que possuem acesso a caríssimos sistemas de processamento de dados poderiam realmente desviar das distrações para encontrar significado. A maioria das pessoas teria acesso apenas ao conteúdo plataformizado, seja lá qual for a moda da época.

É por isso que parte da imprensa especializada em tecnologia dos EUA diz que o conteúdo do TikTok na China é motivacional, focado em desenvolver certos valores tradicionais. E no do resto do mundo é entretenimento viciante.

Imagem simulando uma reunião espírita de intelectuais.

Neste ponto, eu já estava disposto a sentar às margens do Rio Piedra e chorar, quando outro espírito resolveu puxar-me a caneta. Se entendi o sotaque, era do antropólogo Bronisław Malinowski:

Não confunda cultura com ferramentas digitais. Hoje, elas parecem inevitáveis, imutáveis e permanentes. Mas este planeta tem bilhões de anos — é o verdadeiro bilionário. Agora, parece impossível que outras tecnologias surjam (ou sejam recicladas). Porém, nunca se sabe. Provavelmente, um grafiteiro de caverna da chamada pré-história também não conseguiria imaginar um prompt. Não é preciso ir longe. Neste momento mesmo, os humanos convivem com diversas culturas simultâneas, expressando-se por várias mídias que estão fora do radar digital. O próprio universo digital não está completamente restrito às plataformas. Não subestime a impermanência.”

Hmmm. Ok, então.

Agora, acho que preciso de um banho de sal grosso.