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O prazer de ser um não-praticante

Por Eduardo Fernandes.

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Marcus Aurelius, um dos mais estóicos mais cultuados da atualidade.

Já faz alguns anos que o estoicismo entrou na moda, particularmente entre os tech bros dos EUA. Surgiram canais no YouTube e TikTok exclusivamente dedicados ao assunto. Gurus do mercado financeiro, como Scott Galloway, Tim Ferris e até mesmo Nassim Nicholas Taleb se tornaram divulgadores assíduos das ideias de Zenão de Cítio, Epiteto, Sêneca e Marcus Aurelius. Algumas dessas até se tornaram slogans motivacionais usados em empresas como o Google (por exemplo, “controle os controláveis”).

Parece estranho que uma ideologia focada em conceitos como austeridade, autocontrole e paciência tenha se tornado tão viral. Na prática, muitos dos mesmos tech bros neo-estoicos seguem o aceleracionismo. E cresceram admirando o individualismo dos personagens de Ayn Rand. Além de juntar a essa salada tons de sci-fi, astrologia e divulgação científica pop.

Na verdade, o estoicismo é apenas mais um desses multiversos ideológicos apropriados por gurus sazonais. Quer dizer, profissionais do entretenimento intelectual que surgem, desaparecem ou se reciclam ao longo do tempo.

Outras ideias já passaram por esse mesmo processo de retrofit, como o budismo, o cristianismo, o liberalismo clássico e, claro, o marxismo. Geralmente, essas apropriações, diluições e misturas irritam profundamente os conhecedores mais comprometidos de cada ideologia.

PORÉM, no entanto, ainda assim, o retrofit ideológico atende a algo que, talvez, seja um hábito cultural muito arraigado: o do engajamento-meia bomba. Quer dizer, de acreditar em algo, pero no mucho. Sabe aquele velho e bom conceito de “católico não praticante”?

Então: é esse estado de “não-praticanticidade” que me interessa aqui. É um estado psicológico que combina prazer e dor.

Por um lado, há o conforto de ter uma referência ideológica para seguir, de atrelar um significado à vida e pertencer a um grupo diferenciado. Vamos chamá-lo de prazer da ocupação e da antecipação. Ou busca por shots de dopamina, que seja.

Por outro, há a dor / prazer de não conseguir atingir suas metas e de persegui-las. O não-praticante se diverte / se tortura tentando fugir da própria incoerência. Procura por técnicas, compra bugigangas, faz cursos e terapias para tentar se alinhar a uma ideologia que parece sempre lhe escapar.

Essa mecânica provoca uma excitação contínua, uma tensão, quase como quando alguém segura o clímax sexual.

No fundo, a principal função disso é rejeitar a realidade, o que está acontecendo agora, a mente nua, com suas percepções que vão além das nossas ideologias. Parece mais tolerável continuar na busca de um mundo ideal ou tentar disfarçar nossas incoerências.

Não estou defendendo aqui algum tipo de descaso intelectual e apatia comportamental. Nem pretendo virar uma ameba (pressupondo que elas realmente sejam como os humanos acreditam que são).

Apenas tento entender porque os sistemas ideológicos conflitantes em moda vão sempre mudando e se agregando. Parece que quanto mais se mistura, melhor. Assim, é possível ficar ainda mais ansioso, já que você está perseguindo mais ideologias simultaneamente.

Hoje é o estoicismo lutando contra e complementando o capitalismo aceleracionista. Amanhã, deve surgir outra coisa. O importante é manter o pêndulo em movimento. Gozar, jamais.