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O preço da coerência

Por Eduardo Fernandes.

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O Mubi está exibindo Gonzo: a vida e o trabalho de Hunter S. Thompson, de 2008. Há algumas décadas, eu tive alguma dívida cármica com o autor de 'Medo e Delírio em Las Vegas', 'Hell's Angels', clássicos da contracultura jornalística norte-americana dos anos 1970 e 80. Então, resolvi rever o filme e observar o que despertaria no meu atual cérebro mofado.

E...?

Bem, vamos por partes.

Jornalismo arriscado #

Se você não conhece o trabalho de Thompson, uma definição inicial seria: jornalismo etnológico, com aspirações literárias, distorcido e amplificado pelo constante e massivo uso de drogas (especialmente psicodélicas).

Por exemplo: se o jornalista se dispõe a cobrir os Hell's Angels, ele vai pessoalmente até a gangue, conquista sua confiança, dirige Harley Davidsons, foge da polícia e enche a cara, junto com o seu objeto de estudo. E vai quebrando os limites: testemunha um gangbang (sexo coletivo), até que as coisas saem do controle e viram violência.

Hunter S. Thompson voltava dessas experiências com uma enorme ressaca moral. E a relatava, em primeira pessoa, por meio de uma bravata literária que misturava traços de redneck com contracultura. Além de pitadas do que, hoje em dia, chamaríamos de autoficção. Sem esquecer de um tipo particular de fake news surrealista, que garantia mais impacto à crítica social proposta pelo autor.

Personagem de si #

Não tenho muito mais conexão com a obra de Thompson, mas ainda me espanto com o personagem que ele criou para si mesmo.

Um sujeito meio santo, meio selvagem, disposto a inserir qualquer tipo de composto químico no próprio corpo. Um escritor quase esquerdista, mas entusiasta das armas de fogo — tanto que se matou com uma destas.

Thompson planejou meticulosamente seu funeral, desde os 20 e poucos anos de idade. Parentes e amigos sabiam que ele, cedo ou tarde, sairia da vida voluntariamente. E isso só ocorreu quando ele percebeu a decadência da sua fama.

E que fama. Por cerca de duas décadas, Thompson foi um dos jornalistas mais conhecidos, temidos e ridicularizados dos EUA. Até que, num certo momento, foi destruído pelo sucesso: transformou-se numa caricatura, num junkie violento, que não conseguia mais escrever.

Acontece com todo mundo #

Hunter S. Thompson é um exemplo extremo de um fenômeno muito comum, que pode acontecer com qualquer um de nós.

Muitas vezes, nos engajamos numa carreira de modo tão obsessivo que acabamos nos dissolvendo nela. Quem sou eu? “Quem” é esse trabalho? Isso é o que eu chamo de Transtorno Cognitivo Obsessivo Narrativo (TCON).

Por que narrativo? É porque está, essencialmente, lidando com a construção de um personagem.

TCON em ação #

Alguns dos fenômenos que acontecem quando estamos presos ao TCON:

  1. Só conseguimos nos aceitar enquanto estamos, de alguma maneira, desenvolvendo esse personagem. Quando relaxamos, somos “procrastinadores”, “perdemos tempo” ou “descansamos para a próxima fase de esforço”.
  2. Quando somos diligentes e obstinados, o TCON pode gerar uma angústia tão forte, uma fadiga tamanha, que leva a uma vida miserável, paranoica e limitante.
  3. Quando preguiçosos e passivos, somos corroídos pela culpa e sentimento de expectativa: “eu poderia ter sido algo grande”.
  4. Pior ainda: podemos obter sucesso. E aí vem a necessidade de mantê-lo, defendê-lo, ampliá-lo e compreendê-lo.
  5. Também podemos nos perder na celebração de ter criado o personagem que criamos. Durante o sucesso, isso pode causar cegueira periférica. Por exemplo, artistas baladeiros que são roubados por empresários e advogados.
  6. Desenvolvemos uma sensibilidade extrema à fragilidade do sucesso. O que pode nos transformar num pastiche de nós mesmos, forçando a repetição de fórmulas que não funcionam mais. Aparentemente, foi o que aconteceu a Hunter S. Thompson.

Há quem nade onde outro afunda #

Algumas personalidades mais cuidadosas, como Paul McCartney, sobrevivem o tempo suficiente para reciclar a própria narrativa e surfar a decadência natural e cíclica de qualquer personagem.

Então, surgem outros fenômenos: a nostalgia (“como eu era relevante naquela época”) e/ou a responsabilidade da longevidade (Hall of Fame, prêmios pela vida e obra).

Ainda assim, permanece a tensão de gerenciar o personagem. Tanto que há autores, como Thompson, que tentam planejar e controlar até sua posteridade.

Assim, o TCON é também um transtorno de percepção do tempo. Acreditamos que podemos planejar a cultura e o desenvolvimento do futuro. E, assim, assegurar nele a nossa jacuzzi.

Transtorno comum #

Parece que isso só acontece com artistas. Mas é claro que não. Alguns de nós, em vez de obras, constroem currículos. O que segue, mais ou menos, a mesma lógica.

É que, a partir do momento histórico / cultural no qual inventamos e depois fizemos marketing da construção da identidade, também espalhamos sua doença principal, o TCON. Faz parte.

A liberdade da incoerência é um privilégio para poucos. A maioria de nós (eu incluso, obviamente) está desesperada, tentando criar, organizar e manter (inclusive o legado de) um personagem extremamente coerente.

Revendo o filme sobre um personagem tão extremo, como o criador do jornalismo gonzo, me bateu aquele amargor por todo esse business da construção do personagem ideal. Por que o escritor teve que matar a pessoa, Hunter S. Thompson? Por que a pessoa não consegue domar o escritor?