Por Eduardo Fernandes.
Por algum acaso algorítmico, me lembrei da música “Pulso”. É um clássico da banda Titãs, cuja letra é uma lista de doenças, recitadas num tom linear. Ela se reveza com a frase “o corpo ainda é pouco”. Como seria uma versão contemporânea dessa música?
Há tantas possibilidades.
Se o autor quisesse ficar só na área da psiquiatria, poderia compor um épico de 20 minutos.
Ou, talvez, preferisse seguir uma linha menos pessimista, estilo biohacking, de podcasters de saúde, tipo Huberman Lab. E daí listar apenas suplementos: “whey, creatina, termogênicos, albumina”.
Mas se quisesse fazer um disco triplo, conceitual, daqueles que se ouvia nos anos 1970, teria que listar identidades: “assexual, trans, cis, pan, inter”. E, aqui, seria melhor chamar um cantor grego.
Ideologias também serviriam: “comunista, anarquista, libertário, altruísta eficaz, aceleracionista eficaz, extropianista, singularianista, cosmista”. Ou suas respectivas siglas e subgêneros, o chamado TRESCAL.
As estéticas também não poderiam ser ignoradas: “hardcore, vaporwave, barbiecore, plazacore, indie sleaze, weird girl, coastal grandma”, etc.
E o corpo ainda é pouco.
É impressionante a quantidade de identidades que uma pessoa tem que gerenciar durante um só dia. Algumas delas, vivem em contradição: por exemplo, é possível passar o dia todo num emprego escorchante pra poder comprar um par de Dr. Martens e sair à noite parecendo anarco-punk.
É como se todos fôssemos múltiplos cosplays. Por um lado, sabemos que vestimos uma fantasia, que aquilo é algo “irreal”. Ainda assim, sofremos (e gozamos) pra manter a ilusão perfeita, sem incoerências.
A Modernidade fragmentou as identidades em micropartículas conflitantes, que viram objetos de consumo.
E, ao chegar à Internet, essa lógica também invadiu a sexualidade, a medicina, a política, a religião, etc. Assim, passamos a nos autodiagnosticar em múltiplos aspectos simultâneos.
Quantas horas do dia gastamos nesse processo?
O problema é que nem sempre escolhemos nossas identidades. Uma pessoa pode se identificar ideologicamente com a pansexualidade, mas, na prática, só conseguir agir como um monogâmico hétero. Ela pode se achar de esquerda, mas inconscientemente se comportar como de direita.
Na real, a fragmentação da identidade é uma forma de uniformização, já que temos que nos expressar e nos agregar via consumo. E também nas “praças públicas” das redes sociais norte-americanas, ou seguindo as lógicas midiáticas.
A busca por afirmar uma identidade também demonstra os limites da ideia de identidade. É como tentar correr atrás do próprio rabo.
Defender, checar, manter e desenvolver uma identidade coerente traz um cansaço fenomenal. É uma ocupação infinita. Em especial quando consideramos que todos envelhecemos, mudamos e morremos. Até as ideias.
A ansiedade em torno da identidade talvez seja a maior doença conhecida na história. E o corpo ainda é pouco.
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