Por Eduardo Fernandes.
A YouTuber alemã Laura Kampf, uma geek de ferramentas e reaproveitamento de materiais.
Semana passada, eu estava escrevendo algo sobre IA. De repente, uma tempestade tomou a Serra Gaúcha.
A luz caiu. Quer dizer, a luz que vem dos cabos. Porque, fora de casa, foram horas e horas de raios cortando as nuvens, sem parar.
Nunca vi nada igual. Geralmente, relâmpagos duram poucos minutos. Dessa vez, a coisa foi longe.
Imediatamente, perdi meu raciocínio sobre a IA. A chuva mostrou quem manda. Lá estava eu, de volta ao século retrasado.
Hmm. Na verdade, não é bem assim. Mesmo que isolado do mundo digital, eu estava cercado de tecnologias: casa, janelas, isolamento térmico, etc.
Essas são inovações consideradas desinteressantes por boa parte dos geeks. Melhor pensar sobre projetos espaciais dos bilionários ou sobre como a IA vai bater nossas carteiras.
Geeks de cotidiano #
Esse assunto me veio à mente por conta de alguns artigos tentando redefinir o debate sobre mudanças climáticas. Em vez de apenas focar nos perigos iminentes, deveríamos mergulhar nas reduções de danos e sobrevivência.
Basicamente, a ideia é nos tornarmos geeks sobre o planeta e questões cotidianas. Geeks de ciências climáticas, de construção civil, de bombeiros, etc.
Existe muita tecnologia nessas áreas. E também muita arte. Mas nossa sociedade não está, exatamente, otimizada pra enxergar essas coisas.
Talvez, seja só a minha bolha. Ela parece focada nas agruras de tentar manter uma carreira artística e conseguir validação on-line. Ou em entender as novelas do Vale do Silício.
Enquanto parte da Internet se contorce em busca de novas tecnologias revolucionárias e especula sobre os dramas de CEOs, certas coisas básicas permanecem… muito básicas.
É o funcionário da empresa de IA, em Nova Iorque, indo trabalhar, desviando dos ratos nas ruas e com água pelos joelhos. Depois volta pra casa e tem pulgas na cama.
Sou eu, lendo sobre elites querendo subir suas mentes pra “nuvem”, enquanto as nuvens tradicionais não param de baixar água, desde agosto. O que me faz ter que gastar muitas horas tentando domar o mofo.
Enfim, tecnologia não se resume a Elon Musk, redes sociais, Microsoft, Amazon e OpenAI. Nem as profissões artísticas se resumem à escrita ou criação de conteúdo.
Há um universo de arte, diversão, curiosidade e inovação em profissões tidas como “desinteressantes”, mas que são cada vez mais essenciais.
O cinema e a literatura já foram mais eficientes em refletir isso. Ou, provavelmente, eu é que estou desatualizado.
Acho incrível que muitos profissionais perderam a noção de que podem trabalhar de maneira artística. E que muitos artistas não se entendam como profissionais (ou seja, alguém que têm uma prática regular, metódica, sujeita a constantes iterações).
Um alfaiate do século 18, um sapateiro do Japão feudal sequer entenderiam essas divisões conceituais. Nós, contemporâneos, vivemos sob um paradigma romântico e midiático que glamouriza uns e burocratiza outros.
Não precisa ser assim.
Fazedores e pensadores #
Eu mesmo gostaria de ter sido ensinado a amar ferramentas durante a infância. Não precisaria excluir as letras, as artes e a música. Só incluir algumas chaves de fenda, ou aprender a consertar sapatos, costurar, etc. E ter estabelecido alguma relação prática com as florestas (que, hoje, fazem parte da minha vida).
Em especial, eu poderia ter aprendido a respeitar a arte e a espiritualidade contidas nas atividades cotidianas. Como se aprende durante uma cerimônia do chá, por exemplo.
Eu gostaria de ter aprendido a não separar o meu lado pensador do fazedor. Não queria ter me acostumado a viver numa completa ignorância de como as coisas mais básicas funcionam (alimentação, roupas e moradia).
Enfim. É isso ou estou assistindo demais à Laura Kampf.
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