Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

Cancelamento geopolítico

Foto de Michael Dziedzic. Nessa semana, ficou evidente que a lógica do cancelamento, que parecia mais ou menos restrita ao universo da Internet, ganhou poderes geopolíticos. Agora, além de governantes questionáveis, temos de nos preocupar com tropas de pessoas estressadas tendo ideias atrás de teclados. Depois das sanções promovidas pelo governo norte-americano, empresas da big tech se consolidaram como forças paraestatais, cancelando serviços e negócios com a Rússia. Algumas delas agindo radicalmente, para evitar serem consideradas coniventes ou omissas. É o populismo 2.0, "descentralizado", privatizado. O clima de pressão vai se instaurando até chegar a casos ingenuamente engraçados -- como restaurantes deixando de vender pratos russos -- até situações surreais -- como pessoas rejeitando Dostoiévski e marcas de vodca mudando de nome. Definitivamente, entramos numa nova fase do uso da web2 como arma. As redes sociais nos acostumaram a viver o dia inteiro sob a influência de fluxos contínuos de manipulação emocional. De tal forma que até mesmo em lives com análises técnicas e intelectualizadas, os chats se parecem mais com embates verbais entre Hoolligans. Cheios de LETRAS MAIÚSCULAS. Na…

Continue →

Por uma curadoria lenta

Não estou incluído na proliferação de especialistas em geopolítica das últimas semanas. Perdi a conta de quantas vezes comecei e parei de escrever esta edição da newsletter. É que, como muitos de nós, venho tentando tirar algum sentido da situação na Ucrânia. Mas, exatamente por ser formado em ciências políticas, percebo que não sou suficientemente qualificado para dar opiniões relevantes sobre o assunto. É que a invasão da Ucrânia se relaciona com múltiplos fenômenos interdependentes: Além de outros aspectos mais próximos dos assuntos regulares desta newsletter: Enfim. É um assunto vastíssimo. Por enquanto, o máximo que posso fazer é dizer como venho acompanhando o conflito. Certamente, não é pela imprensa tradicional brasileira, que, de modo geral, se baseia na norte-americana e reproduz discursos problemáticos. Então, comece por aqui. Trata-se de "uma live" com o professor de relações internacionais da PUC-SP, Reginaldo Nasser (vale revelar que eu fui assistente dele durante minha graduação, então posso estar enviesado). Tenho resistido a "fazer curadoria" para não estimular FOMO e vício em dopamina. Além disso, note que leio coisas com as quais discordo (por…

Continue →

Uma relação de mão única

Estava agora mesmo pesquisando sobre relações parasociais quando soube que Mark Lanegan morreu, aos 57 anos. Sacanagem. Ele era uma das minhas intimidades imaginárias mais longevas. Venho acompanhando a carreira de Lanegan desde os anos 1990, quando ele cantava na banda de neo-hard rock Screaming Trees. Desde então, sua produção se diversificou muito: participou da melhor fase do Queens of Stone Age, fez dueto com Isobel Campbell e lançou vários álbuns solo — que circulavam do folk, pós-punk, até covers de músicas populares. Lançou livros de confissões da sua vida louca, cuja versão audiobook é ainda mais apavorante. Inspirou até um livro de colorir antiestresse (sério?). Ou seja, como suas canções eram, em si, bastante autobiográficas e vulneráveis, eu tinha muito material para considerar Lanegan quase como meu chapa. Nem precisava da Internet para invadir sua privacidade, que era bem privativa, por sinal. Mark era, essencialmente, um introvertido. E eu me conectava com ele exatamente por isso, além da apreciação por vozes graves, músicas agridoces e personagens vira-lata. Mas estava falando sobre interações parasociais. É um fenômeno muito antigo, estudado…

Continue →

Sobre ler e discordar. Acho.

Como você sabe, o jornalista e cineasta Arnaldo Jabor morreu recentemente. Fui leitor regular de suas colunas no OGlobo e na Folha de S. Paulo, nos anos 90. Por volta dos 2000, perdi o contato com seu trabalho, não me lembro porquê. Em verdade, verdade vos digo: era (e sou) muito mais fã do gênero crônica do que de Jabor em si. Aconteceu também com Nelson Rodrigues. Não me interessava exatamente pelo seu teatro ou pelas suas ideias, mas me divertia com o estilo das suas crônicas. Tanto que lia até mesmo seus textos sobre futebol, assunto sobre o qual consigo ser ainda mais ignorante do que sou a respeito de todos os outros. Era uma época diferente: líamos autores(as) com os(as) quais não concordávamos. Admirávamos textos mesmo que repudiássemos suas ideologias. Aprendíamos de um jeito torto. Minha formação sobre Karl Marx, por exemplo, se beneficiou muito de um livro de Raymond Aron. O pensador liberal francês era, sobretudo, um grande escritor: didático e preciso, levantava questões que facilitavam a releitura dos textos originais. Em outras palavras: Aron me ajudava…

Continue →

Tiozão do churrasco Inc.

Você já teve a sensação de viver numa espécie de estação espacial, recebendo da Terra apenas comunicações fragmentadas, com latências e cheias de falhas? Foi mais ou menos o que senti ao saber das confusões envolvendo o termo Monark. Não era uma bicicleta? Parece que não mais: agora, trata-se de um popular podcaster no Brasil. Como vivo isolado criogenicamente numa bolha, não o conhecia. Se entendi direito o que li na imprensa, hoje, as pessoas dão atenção a bêbados defendendo a legalização de um partido nazista. Que coisa mais excêntrica. Coincidentemente, soube que o bicho também pegou para o norte-americano Joe Rogan, que eu praticamente nunca vi. Parece que ele defendeu coisas indefensáveis sobre o COVID-19 e causou alguma confusão para o Spotify. Talvez você esteja melhor informado sobre essas mumunhas do que eu. Desculpe minha ignorância. É que sou dinossáurico e um tanto elitista. Gosto de especialistas e estudiosos. Então, realmente, estava perdido em podcasts como Team Human, The Audio Long Read, Resumido, Guia Prático, Rádio Escafandro, The Other Others, Darknet Diaries, entre vários outros, incluindo os que eu…

Continue →

Sem permissão

Sem permissão (permissionless, em inglês) é uma das expressões favoritas dos entusiastas da web3. Talvez só perca para “descentralização”. São palavras fortes, metáforas fáceis de vender num mundo formatado pelo modernismo, ainda tão (inconscientemente) positivista. Associamos esses termos com a ideia de liberdade individual, ausência de burocracia, com o desejo de que ninguém nos controle. Não importa o quão tecnológicos nos tornemos, ainda somos abduzidos por esses fantasmas culturais simplistas, usados tantas vezes para justificar genocídios e ditaduras. É interessante que a metáfora da liberdade individual simplista tenha sobrevivido aos ataques de tantos pensadores, ao longo dos anos. Só nos últimos séculos, só no Ocidente, tivemos Freud, os existencialistas e tantos outros, nos alertando para o fato de que liberdade pode ser um fardo e, no mínimo, uma ilusão. Mas qual seria sua alternativa? Delegar o controle das nossas vidas para políticos, monopolistas, processos jurídicos e oligarquias? Nem pensar. Onde é que eu assino para me livrar disso? Nesse outro contrato que, logo descobrimos, nos leva a mais servidão. Meu objetivo aqui não é criticar as tecnologias da web3. Na…

Continue →

Em quais cidades você mora?

Uma das “cidades” em que eu morava, nos anos 1990. Ontem foi aniversário de São Paulo. Quase escrevi sobre ser paulistano. Porém, ao começar, percebi que a coisa não seria tão simples. É que, ok, eu nasci e vivi nessa cidade até 2008 e voltei em 2021. Mas em quais São Paulos, afinal, eu vivi? E para quais retornei? Explico. Fui criado em Pirituba, bairro classificado oficialmente como da zona norte. Mas os habitantes insistem em se considerar da Zona Oeste. Tanto que há até um conhecido grupo local chamado RZO (Rap Zona Oeste). Então, a complicação começa por aí: o território da identidade nem sempre é o mesmo da descrição geográfica. Talvez por conta do tamanho oficial da cidade, é mais fácil se identificar com um bairro do que com toda SP. Você pode passar uma vida inteira num microcosmo, com seus sotaques e toda uma rede de circulação para os bairros mais próximos. Também há essa ferida aberta na cidade, chamada Rio Tietê / Pinheiros. Para muitos, atravessar de uma margem à outra, enfrentar as pontes e marginais,…

Continue →

A culpa é do Arquivo X?

O casal de agentes de Arquivo X: sempre desconfiados. Ando obcecado com a ideia de que, desde a Segunda Guerra, cada vez mais aplicamos técnicas da Indústria do Entretenimento (storytelling, gamificação, entre outras) para gerenciar o cotidiano. Até certo ponto, o Entretenimento vem se tornando a linguagem pela qual entendemos a vida. Eleger um presidente, trabalhar, transar, pensar, tudo passa a ser uma espécie de seriado, com seus mistérios, tramas ocultas (conspirações) e ansiedades por fluxos constantes de “novidades”, estímulos surpreendentes (plot twists) ou expectativas pela renovação do frescor nas experiências (próximo episódio ou temporada). É uma tese complexa, que demandaria mais explicações do que eu poderia dar aqui. Por isso, eu só queria compartilhar trechos de um artigo na Vox, de Emily St. James (ex-VanDerWerff), que relatam um curioso caso de cobra mordendo o próprio rabo. Traçando uma linha histórica do uso do mistério em seriados, St. James afirma que: A popularidade de Arquivo X na Internet estabeleceu um padrão rudimentar para como discutimos sobre TV on-line: tentamos deduzir o que acontecerá no show, mesmo quando ele não é,…

Continue →

A tecnologia acabou. E agora?

Cena de Station Eleven: crianças traumatizadas pela pandemia seriam capazes de construir um bom futuro? Padrões mentais são escorregadios. Você pensa que se livrou de um, mas ele acaba voltando. Nesse caso, meu ranhetismo cultural: basta surgir um hype que fico automaticamente desconfiado. Porém, em vez de simplesmente ignorá-lo, tenho de investigá-lo e achar um motivo para reclamar. Aconteceu de novo com a minissérie pós-apocalíptica Station Eleven, da HBO. Baseada num livro de 2014, de Emily St. John Mandel, fala sobre uma pandemia que destrói a civilização como a conhecemos. Adeus, tecnologias, conveniências e até estados nação. Em vez de descambar para um cenário Mad Max, a série adota um tom bem mais prosaico: mostra como, para sobreviver, as pessoas tiveram que voltar a um sistema quase feudal. A vida continua, mas sem eletricidade. Assistimos aos primeiros anos da reconstrução dessa sociedade a partir de um ponto de vista bem particular: o de um grupo de teatro mambembe Shakespeareano, que se apresenta regularmente, circulando por um circuito mais ou menos seguro. Ou seja, tudo para agradar velhotes nostálgicos como eu:…

Continue →

Duas novas do Voivod

Parando as férias para compartilhar duas músicas novas do Voivod, clássica e inovadora banda canadense, cujo som, inimitável, junta sci-fi, rock progressivo e metal. As novas faixas continuam na tradição dos discos Dimension Hatröss (1988) e Nothing Face (1989) e fazem parte do próximo disco, Synchro Anarchy, previsto para fevereiro. É de se espantar que a cada trabalho novo com o guitarrista Dan Mongrain (Chewy), o som desenvolve ainda mais a identidade do Voivod, em grande medida criada pelo falecido guitarrista Denis D'Amour (Piggy). É um caso de substituição perfeita. Não sei se o próprio Piggy conseguiria manter essa fidelidade e capacidade de recriar um estilo de som tão único.

Continue →