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Paranoias de viagem

Por Eduardo Fernandes.

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Estou quase com os pés no aeroporto de novo. E o processo de preparação da viagem é engraçado. Você passa a vida inteira tentando viver no presente. Quando precisa pensar no futuro, procrastina.

Deveria existir um gênero de literatura dedicado às preparações de jornadas. Aquilo que acontece logo antes do herói se jogar na estrada. As expectativas, as projeções, os contatos com pessoas que já foram. Enfim, as pré-roubadas, as espectrais roubadas de antecipação.

Hoje, existem tantas informações conflitantes sobre tudo, que me tornei uma espécie de leitor estatístico. Antes de comprar qualquer coisa, dou uma passadinha no Reclame Aqui. Nas lojas digitais, comparo reviews e tento detectar quais são encomendadas, parciais ou desinformadas.

Tento ver se há algo suspeito nas URLs. E os tropeços culturais já começam antes de sair de casa. Por exemplo, ao pagar uma taxa, fiquei desconfiado do endereço “.gob”. Até me lembrar que governo em espanhol é “gobierno”.

Também é comum enfrentar alguma geotecnologia, geologia da tecnologia. Numa mesma tarde, você precisa usar sites e aplicativos que parecem existir em épocas diferentes da Internet. Os padrões de confiança / desconfiança de uma era não funcionam em outra. Você tem que fazer algum multitasking cultural e histórico.

Até pra comprar uma passagem de ônibus, procuro informações sobre o caminho no YouTube e mapas. Verifico a reputação das empresas no Trip Adivisor, etc. Não compro assentos perto das janelas (graças ao Cliff Burton).

Já sei que é perigoso viajar de ônibus entre o aeroporto e minha cidade destino. Dizem que há muitos furtos. Mas não vi nenhum depoimento sobre assalto.

É recomendado que não se coloque nada na área de bagagem acima do banco. Assim, estou levando um cordão de varal pra amarrar a mala de mão em algum lugar. Não no meu corpo, pra não ser machucado, caso a tentativa de furto seja mais violenta.

O dinheiro vai separado em duas contas. Algum trocado pra bandidos. Cartões armazenados em lugares diferentes. Seguro viagem cobrindo translado do corpo, caso eu venha a bater as botas. Todas as taxas pagas, com cópias em pdf e impressas. Máscaras. Alguns remédios simples. E por aí vai.

É engraçado, eu sei. Parece que estou indo pro The Last of Us ou algo assim. Mas é a mente de programador: você tenta pensar em tudo o que pode dar errado.

Já ouvi chamarem esse método de análise premortem. Quer dizer, você imagina que seu projeto falhou. E pergunta quais seriam os motivos. Em tese, já se prepara. E aproveita pra se lembrar de que a vida pode surpreender, inclusive dando tudo certo.

Meu falecido pai odiava quando eu pensava assim. Dizia, “lá vem ele com esse Murphy”. Referia-se à Lei de Murphy, que eu evocava, um tanto pra fazer piada.

O fato é que há vários níveis de preparação pra uma jornada. O espiritual, deixo pra pessoas mais qualificadas comentarem, como Shabkar. Tento dar conta da parte burocrática.

E, em 2023, até que é moleza. Você ainda precisa se preocupar com crime, acidentes e má-comunicação. Mas parece bem mais fácil do que carregar um Guia São Paulo na mochila, como eu fazia nos anos 90. E desviar das brigas entre punks, metaleiros e skinheads.

Imagine, então, como seria um vlog de Paulo de Tarso. Provavelmente, esse foi homem que mais andou nesse planeta. Iria estourar os contadores de passos do iPhone. Poderia ser patrocinado por alguma marca de botas.

E os monges budistas que cruzavam a Ásia, enfrentando bandidos, animais e fome? Ou os nômades tibetanos, que carregavam monastérios móveis, montados periodicamente como circos, em tendas?

Enfim, ainda hoje, com tantas comodidades, viajar tem um alto nível de mindfuckness. Até mesmo a preparação da jornada já queima alguns parafusos do tal herói.

Imagine se franquias como 007 ou A Identidade Bourne tivessem spin offs só com o pessoal dos bastidores: quem compra aquelas passagens todas? Quem acerta os fuso-horários? Como são montadas aquelas armas no Aston Martin DB5? Quais são as cláusulas do plano de saúde de James Bond? E por aí vai.

Da minha parte, sigo pra mais um check in. Se tudo der certo, a próxima newsletter será enviada direto da América Central. Até.