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Passando um perrengue juntos

Por Eduardo Fernandes.

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Você acompanhou o perrengue da última edição do festival Burning Man? Depois de uma mega tempestade, 80 mil pessoas ficaram presas no meio da lama, no deserto de Nevada, EUA. Aos poucos, o local vem sendo evacuado por uma única estrada. As imagens da enorme fila de carros são impressionantes.

Inicialmente, meu instinto de jornalista / moralista foi o de classificar essa situação como “perrengue chique”. Afinal, o Burning Man não é mais um festival de contra-cultura artesanal e hippie. Está mais pra evento cultural e fenômeno arquitetônico. Atrações cheias de luzes, tecnologia pra bilionários em férias e techbros fazendo networking.

Eu ia comparar o Burning Man 2023 com o ciclone que passa agora mesmo pelo sul do Brasil, o “perrengue true”. Cidades inundadas, gente perdendo tudo, sem casa pra voltar depois das dificuldades. Mas estou fazendo um esforço enorme pra não deixar minha mente seguir essas lógicas negativas e populistas.

O que eu queria dizer é o seguinte: obviamente, os perrengues não são iguais. Mas, seja lá qual for sua intensidade e contexto, eles provocam alguns comportamentos que são culturalmente muito necessários.

  1. Foco. Urgências cortam os detalhes desnecessários e as picuinhas. São uma espécie de faxina cognitiva. Reduzem a dispersão e a complexidade das situações pra um nível mais prático.

  2. Derrubam identidades. De repente, a pessoa deixa de ser “de direita” ou “de esquerda”. É alguém que precisa ser ajudado. Ou capaz de auxiliar outros.

  3. Cortam a ignorância — pelo menos por um tempo. Mesmo que nossas máquinas e engenharias consigam construir cidades temporárias no meio do deserto, ainda somos parte de um planeta muito mais poderoso. Nenhuma espécie específica está no controle. Precisamos de lembranças constantes de que o universo não foi fabricado pra nos servir. O complexo de god mode é real.

  4. Mudam a perspectiva. Mesmo o mais sociopata dos techbros precisou renunciar às fantasias mecanicistas e solucionistas por um segundo. Pisando na lama, sentindo o que significa fazer parte de um ecossistema, existe uma possibilidade de abertura mental. É um segundo de espanto e de apreciação legítima da interdependência. Se a pessoa foi ao festival buscando por um insight, não pode reclamar. Mesmo cancelado, o Burning Man apontou a tendência do que é urgente agora: renunciar ao entretenimento e cuidar uns dos outros.

O influencer Judson Graham entrevistou frequentadores mais antigos do festival. Todos concordam que a versão de 2023 acabou ficando mais parecida com as edições iniciais do evento. Naquela época, o perrengue coletivo tinha uma dimensão espiritual. Era uma espécie de purificação, de busca do que é mais fundamental e urgente na convivência entre seres e ambientes.

Pelo jeito, não acontecendo, o Burning Man voltou aos primórdios.

Update: o escritor Cory Doctorow esteve no meio da lama e conta como foi (com paywall do New York Times).


Quanto ao ciclone no Sul do Brasil, não há muito o que teorizar. As pessoas precisam de ajuda. O Instituto Moinhos Social (do Hospital Moinho de Vento, em Porto Alegre) está aceitando contribuições.