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Pensando sobre corrupção

Por Eduardo Fernandes.

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Transcrição #

Hoje tenho 2 histórias para contar.

A primeira aconteceu na frente do apartamento em que estou morando temporariamente, em São Paulo. Fica num bairro de classe-média, no meio de uma área cheia de escritórios. Consequentemente, os assaltos também são recorrentes.

Numa certa noite, por volta das 10h30, um vizinho recebeu um entregador motoboy no portão do prédio. O vizinho teria que pagar R$ 400 pela compra, usando uma daquelas máquinas portáteis. Entretanto, o entregador digitou um zero a mais no aparelho, R$ 4 mil. Emitiu a nota e saiu rapidamente, acelerando ao máximo.

O vizinho notou a fraude e correu atrás da moto, saltou nela e derrubou o motoqueiro. Girou e lhe aplicou um mata-leão. E, então, começou a gritar, no meio da rua: “alguém me ajuda!”.

Logo, o entregador descobriu uma coisa bem pitoresca do bairro: a região é cheia de academias de artes marciais e de musculação. Só na minha rua, há umas 5 ou 6. Sério: a densidade marombática aqui deve estar na casa dos 30%.

Então, em alguns minutos, desceram dois fortões do prédio em frente, um dos quais já foi chutando o entregador, sem nem avaliar a situação. Em poucos minutos, um monte de gente saiu nas janelas e sacadas, berrando opiniões impróprias para um podcast de família. A polícia chegou cerca de 30 minutos depois, evitando que o rapaz fosse linchado.


A segunda história aconteceu num Uber. O motorista, de uns 60 anos, usava uma manivela estranha no volante. Perguntei o que era aquilo: “sou manobrista no supermercado, sabe? E já faz um tempo, uma das minhas mãos ficou meio paralisada“. “Ainda está? Não parece”, perguntei. “Não. Melhorou logo. Mas aproveitei para comprar um carro adaptado para deficientes, porque paga menos impostos. Ninguém dá nada para a gente, só tira, né? Então, quando faço exames, sempre digo que minha mão ainda está ruim“.


Lembrei-me dessas histórias quando assisti ao bom vídeo O que é Corrupção, de um YouTuber marxista chamado Jones Manoel.

No programa, ele critica aquilo que chama de visão culturalista do da corrupção: dizer que o governo é corrupto porque o resto da população também é. Segundo Jones, não há como comparar o poder destrutivo e organizacional da corrupção das elites e do governo com os cambalachos que as pessoas fazem diariamente.

Concordo. A corrupção é uma forma de luta de classes e, quanto mais poderoso o corrupto, maior a sua capacidade não só de corromper o sistema, como de usá-lo para sair ileso. No final do vídeo, Jones Manoel diz acreditar que se melhorarmos a distribuição de renda, diminuiremos a corrupção. E, nesse ponto, eu discordo.

Pense nas histórias que contei antes. Além da luta de classes, elas demonstram duas formas práticas de autogoverno. É uma espécie de anarquismo não-teórico brasileiro cotidiano. Ou, para usar um termo mais pomposo, anarquismo ad-hoc.

No caso do entregador corrupto, no calor da hora, parecia muito mais cômodo tentar resolver o problema via força bruta e “engajamento comunitário” do que esperar a polícia e enfrentar a burocracia do cartão de crédito, até conseguir a devolução do valor roubado.

No caso do motorista de Uber, a coisa já é um pouco mais premeditada. Ele escaneia oportunidades, nota pontos fracos na legislação e age para evitar ser lesado pelo Estado. Assim como muitos pensadores clássicos anarquistas, o motorista parte do pressuposto de que o imposto lhe foi… imposto, que será mal utilizado e que seu dinheiro será entregue ao crime organizado eleito.

Em ambos os casos, o que vemos é um profundo ceticismo e ressentimento em relação ao Estado. Mas também à burocracia institucional capitalista. Isso é uma luta de classes? Também. Mas vai além: é um ato de resistência à própria política “racional” e organizada de cima para baixo.

A política não é vista como algo que emana da população, que viria para ajudá-la. Não há “contrato social”. Pelo contrário: é uma imposição, que tolhe sua liberdade e causa prejuízos. Os mais pobres acreditam que tanto o Estado quanto o mercado apenas defendem as elites. Estas, por sua vez, pensam que o Estado é lento, ineficiente e cuida apenas de si mesmo.

Então, esbarramos numa das questões mais velhas da teoria política: a legitimidade. Eu não reconheço, não dou poder às pessoas, ideias e processos que tentam me governar.

A política é uma crença que gera uma prática. E toda crença gera corrupção, assim como a dúvida e a repressão. É um bug da linguagem.

Mas, em especial, o que assistimos hoje é um problema de escala: eu não reconheço mais as pessoas que me governam, não entendo mais o gerenciamento do meu cotidiano, então não lhes concedo legitimidade. Ou lhes ofereço uma legitimidade pró-forma. No cotidiano, nos bastidores, me defendo das regras, sempre que possível.

Esse também um dos motivos pelos quais o populismo sempre assombra a política. Durante milhares de anos, nos acostumamos a viver em sociedades pequenas, atribuindo legitimidade via religião e/ou carisma pessoal. De repente, elas ficaram gigantes e complexas. A alienação se espalhou por todas as áreas da vida. Pior: temos uma indústria cultural que lucra quando reforça o ceticismo e sensação de pânico constante. Nesse caso, é um instinto quase primal confiar na primeira pessoa que pareça forte e autoritativa, ou em redes mais íntimas de legitimação, como o pastor, nossa bolha na Internet ou autores favoritos.

Por isso, corrupção não é só um problema de classes. E também não é só jurídico ou cultural. É tudo isso e muito mais. Corrupção é uma denúncia da futilidade e, ao mesmo tempo, da necessidade da política.

Minha metáfora preferida para entender a corrupção é a do sistema imunológico. Combater corrupção é um tanto parecido como manter um corpo razoavelmente saudável: um processo dinâmico, multifacetado e apenas possível até certo ponto. Não existe corpo 100% saudável, até porque ele, no mínimo, está no processo natural de decadência e morte.

Assim, a doença pode ser muito informativa: pequenas crises acontecem o tempo todo e ajudam o sistema a se corrigir, se fortalecer e se manter vivo.

Não estou defendendo a corrupção. Nem um pouco. Mas defendo aprender constantemente com ela. E, especialmente, repudio usar demagogicamente o combate à corrupção, como rejeitaria um médico que usa sua autoridade para vender cirurgias desnecessárias.

A corrupção é horrível. Em doses cavalares, pode destruir uma sociedade. Ainda assim, é um sistema doentio de autocorreção da política.