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Personagens não jogáveis

Por Eduardo Fernandes.

Transcrição #

Alguns dias antes de começar o conflito na Ucrânia, assisti ao filme Free Guy, que está circulando pela Disney Plus e HBO Max. É uma comédia sobre como seria viver num videogame multiplayer do tipo o GTA: Vice City, entre outros.

Acompanhamos o cotidiano de alguns personagens não-jogáveis, aqueles que ficam apenas executando tarefas repetitivas no game. Isso pode variar entre servir café, até levar tiros e ser torturado sistematicamente.

O herói do filme chama-se apenas Guy, "cara" ou ainda "Cara da Camisa Azul", o que é uma referência direta aos blue collar workers, nome pelo qual são conhecidos os trabalhadores braçais nos EUA. Mas, na verdade, Guy é um caixa de banco, cuja principal tarefa é ser assaltado diariamente e sonhar em arranjar uma namorada.

Certo dia, encontra com uma personagem feminina, o que lhe detona uma espécie de crise existencial. Então, Guy começa a mudar sua rotina e incentivar outros personagens a fazer o mesmo. Mas, contrariando a lógica de boa parte dos videogames, em vez de sair por aí atirando nos outros, Guy começa a fazer ações altruístas, tornando-se quase que um super-herói super caricato.

Aos poucos, entendemos que Guy é um tipo de inteligência artificial que alcançou a autoconsciência por meio do poder do amor romântico. Owmm.

Parece uma besteira sem fim. E, de certa forma, é. Como eu disse antes, é uma comédia de ação, cheia de computação gráfica e inúmeras referências a clássicos da cultura pop. Para um filme mais radical sobre videogames, assista Existenz, clássico dos anos 90, dirigido por David Cronemberg.

Ainda assim, além da óbvia crítica à cultura da violência em certos tipos de games, Free Guy me trouxe algumas outras reflexões. Em especial depois de estourar o conflito na Ucrânia.

É que toda sociedade define seus personagens não-jogáveis. Aqueles cuja morte ou sofrimento são aceitáveis. Ou até mesmo invisíveis. De animais que comemos ou exterminamos sem qualquer drama moral até toda uma população que estrangulamos com sanções econômicas para forçá-las a resolver problemas que a diplomacia causou e não quer consertar.

O colonialismo norte-americano e, principalmente, seus valores culturais, precisam se expandir, tanto geopoliticamente quanto até para o mundo digital, o metaverso. E, em todos os ambientes, está baseado na violência entre jogadores poderosos, que atinge sempre personagens não-jogáveis, aqueles que apenas tentam continuar sua existência repetitiva e cotidiana, consumindo entretenimento barato e comida processada (no filme, representada como sorvetes de chiclete).

Agora, uma coisa me preocupou no filme. Apesar das críticas sociais, ele ainda sinaliza que a vitória contra as forças opressivas se daria pelo esforço individual heroico. Ou melhor, pela parceria entre um casal romântico. Ainda é o empreendedorismo do homem branco, esperto, agora fundamentado no conhecimento da tecnologia.

Para concluir, repare numa das cenas finais do filme, daquelas que reforçam o sentimento de triunfo do herói. Guy conversa com o amigo segurança de agência, que diz: "preciso voltar ao banco". O herói replica: "não há mais bancos". Posso estar sendo paranoico aqui, mas, talvez, o diretor canadense Shaw Levy, o mesmo de Stranger Things, esteja se alinhando com o discurso dos ideólogos do bitcoin e blockchain. Será?


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