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Prostitutas da terceira idade

Por Eduardo Fernandes.

A protagonista do filme, So-Young.

Às vezes, me espanto com o tamanho da minha ignorância. Por exemplo, nunca sequer pensei no que acontece com as prostitutas depois dos 60 anos. Simplesmente se aposentam? Recebem auxílio do governo? Obviamente, não. Dependendo do caso… continuam trabalhando.

Desse jeito, no genérico, esse já seria um assunto e tanto. Mas o diretor sul-coreano, E J-Yong, faz um corte temático um pouco mais específico em The Bacchus Lady (2016).

O filme se baseia num fenômeno relativamente recente, que surgiu na Coréia do Sul, depois da crise econômica na Ásia, em 1997. Sem assistência social ou familiar, muitas mulheres de 50 a até 85 anos tiveram que voltar ao mercado de trabalho.

Ex-prostitutas de rua passaram a frequentar praças de Seoul, em busca de clientes, geralmente, na mesma faixa de idade. E, como a prostituição é crime no local, para encobrir suas atividades, as senhoras vendiam uma bebida energética conhecida como Bacchus-F. Daí surgiu o termo “Bacchus Ladies”.

As Ladies costumavam cobrar o equivalente a R$ 100 por encontro. E injetavam, diretamente nas veias dos clientes, substâncias que ajudariam a ereção. Para economizar, usavam as mesmas seringas e agulhas para diversas pessoas, além de aceitar fazer sexo desprotegido. Obviamente, isso resultava em transmissão de doenças.

Esse é o ponto de partida do filme. A protagonista, talvez ironicamente batizada de So-Young (“tão jovem”, em inglês), testa positivo para gonorreia. No consultório onde recebe a notícia, conhece uma filipina, que está acompanhada de um filho de uns 5 anos. A mulher acaba agredindo um médico, gerando uma confusão com a polícia. No calor da hora, So-Young decide sequestrar e proteger a criança.

Então, o filme se divide em algumas narrativas paralelas, que se conectam apenas levemente:

  1. A relação com a criança remete a um filho que So-Young abandonara no passado.
  2. Acompanhamos o cotidiano da prostituta, tentando encontrar novos clientes, lidar com colegas invejosas e mudando suas estratégias de trabalho, já que não poderia mais fazer sexo, até se curar da gonorreia.
  3. Em paralelo, vemos como as acelaradas mudanças sócio-econômicas da Coréia do Sul ruíram parte dos valores confucionistas do país, em especial o respeito e cuidado com pais e idosos. Surge uma massa de idosos solitários, que não se conectam com as famílias e que se sentem profundamentente perdidos, defeituosos e inúteis. Em certo momento, um dos personagens resume esse sentimento com a frase: “Como fui me tornar isso?”

Contém spoilers a partir daqui #

É nesse ponto que há uma virada ao mesmo tempo gentil e cruel na história. O espectador está plenamente compadecido de So-Young. Até que ela, por uma combinação de dó com falta de perspectivas, embarca numa profissão arriscada, porém muito mais lucrativa: ajudar os seus clientes a se suicidarem. E é por isso que o título do filme, em coreano, é “A Mulher Assassina”.

Cena de The Bacchus Lady Pais tentam fazer os adolescentes saírem do celular e se aproximarem do avô: "Mas ele fede!"

A Coréia do Sul tem uma das maiores taxas de suicídios de idosos do mundo. E, aos poucos, percebemos que So-Young não mata por dinheiro. De certa forma, ela se considera uma filantropa, não só por fazer a vontade dos clientes. Ela tenta oferecer algum entretenimento e dignidade às pessoas do seu círculo social — a criança, sua mãe filipina (agora presidiária) e os vizinhos de cortiço.

Cena do filme The Bacchus Lady - cortiço Um dos vários cortiços de Seoul.

So-Young definitivamente compartilha do desespero de ter que lidar com a velhice e a doença. Mas parece resignada, apenas seguindo o fluxo de “oportunidades” que lhe aparecem. Tanto que, ao ser pega pela polícia, pensa que saiu no lucro. Para ela, seria apenas uma oportunidade de ter casa e comida, sem ter que vender o corpo.

Em especial, parece feliz de ter encontrado um lugar para morrer sem preocupações. E é o que acontece. A cena final do filme revela uma crítica, de certa forma, também baseada na nostalgia do confucionismo. So-Young é cremada respeitosamente, porém como uma indigente, solitária, sem família.

Contando assim, o filme parece uma tragédia sem fim. E é. Mas a virtude de E J-Yong, como diretor, está na sua leveza. Até mesmo nos momentos de assassinato, tudo flui num tom agridoce e estranhamente íntimo.

Comparado com o estilo de crítica social cafeinada de séries e filmes sul-coreanos mainstream atuais, “The Bacchus Lady“ é uma valsa tóxica: delicada, mas corrosiva.


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